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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

CONTOS PARAENSES - MARQUES DE CARVALHO


Marques de Carvalho
Biografia
Marques de Carvalho fez parte da escola literária conhecida como Naturalismo. Ele estudou em Lisboa, morou na França e na volta ao Brasil atuou como jornalista no Diário de Belém. Em 1884, ele rompeu com o periódico após a recusa no pedido de publicação do conto “Que bom marido!”. O conto, na época considerado imoral, foi publicado um dia depois em A Província do Pará. João Marques de Carvalho (1866Nice, 11 de abril de 1910) foi um escritor, diplomata e jornalista paraense. É autor da obra naturalista Hortênsia, de 1888, ambientada em Belém.
Em 1879, embarca para Lisboa a fim de continuar os estudos de humanidades. Dois anos depois transfere-se para a França. Volta ao Pará, em 1884, iniciando a carreira de jornalista como colaborador do Diário de Belém. Rompe no ano seguinte com esse periódico pela recusa em publicarem o conto "Que bom marido!", declarado imoral. No dia seguinte A Província do Pará o publica. Mais tarde, esse trabalho aparece em Contos Paraenses, 1889, páginas: 45-53. Em 3 de setembro é representada no Teatro Cosmopolita a comédia em um ato Entre Parentes..., na festa da atriz Aurora de Freitas. Em 1887, é um dos fundadores e redator-chefe do diário Comércio do Pará. Em 1888, publica sua obra máxima, Hortênsia, um romance naturalista que retrata um incesto entre dois irmãos. Foi impresso na tipografia da Livraria Moderna, em Belém. Foi reeditado, em 1989, e por último em 1997.
Em 1891, sendo ministro das Relações Exteriores (1891 a 1893) o paraense Justo Leite Chermont, inicia a carreira diplomática como cônsul brasileiro em Georgetown. No ano seguinte é transferido para Assunção como segundo-secretário de legação.
Em 1894, é transferido para Montevidéu como primeiro-secretário. Um ano depois vai para Buenos Aires como encarregado dos negócios. Em 1896, é demitido de suas funções por interferência do ministro Fernando Abbott, que o acusa dos crimes de peculato e estelionato. Volta então para Belém, reiniciando as atividades jornalísticas em A Província do Pará. Em 1897, vai ao Rio de Janeiro para defender-se da acusação imposta ficando preso no quartel da Brigada Policial. Em 1898, é condenato por peculato, grau médio, no Supremo Tribunal Federal. Por intermédio de seu advogado, é absolvido no ano seguinte. Em 1900, funda a Academia Paraense de Letras, que só irá se estabelecer de fato em 1913. Achando-se doente, fixa residência em Nice, onde falece.





 “ DESILUSÃO”

O Conto nos coloca diante de uma personagem grotesca e vazia.  O autor utiliza-se dos casos de amor fortuitos da personagem D. Joaquina para traçar um perfil exagerado da mulher aos moldes naturalista, cuja personalidade oscilava entre as transpirações românticas e a realidade dos apelos do instinto.

D. Joaquina, apesar de todos os pejorativos a sua aparência, a sua condição de solteirona e ao seu intelecto tem um comportamento avançado para a época.  Ela toma a iniciativa no cortejo ao Francisco da Natividade, homem superiormente bonito e elegante, e quando este não lhe corresponde ela o troca pelo sobrinho Raul, que é bem mais jovem, bonito e com finezas de homem da metrópole, um tipo declaradamente romântico. Assim numa atitude contemporânea ela conjuga a máxima atual “a fila anda”.
Ao subverter as relações entre – Guedes e Belizaria, Francisco da Natividade e D. Joaquina – D. Joaquina e Raul - ele cria falsos “tolos e/ou subalternos”, e nos expõe ao jogo de aparências que sustenta a vida dos personagens.



ESTUDO DO TEXTO

A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente zombeteiras dos moços que fingem cortejal-as por distração.
Tinha ella a tez,—enrugada e molle como a casca do janipapo maduro,—salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas; encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz, comprado sempre na Loja Mariposa, da qual o co-proprietario Affonso,—o sympathico Affonso,—vendia-lh'o com muita dóse de réclames e chamadas de attenção para a superioridade da fazenda. Usava uns vestidos fóra da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos quaes primavam os enfeites vistosos,—uma garridice da sra. d. Joaquina.
O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refêgos da engelhada epiderme,—posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a cara
suada d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos idade.


Comentário

O texto começa com a descrição da D.Joaquina – uso da comparação – Jenipapo maduro (feio por fora mais saboroso por dentro) que com outras expressões reforçará a idéia de uma mulher com uma aparência comprometida mas com a idéia de uma essência que daria satisfação a quem conhecesse.
A criatividade do escritor estabelece a partir do nome da loja “Loja Mariposa” uma associação iao inseto conhecido também como bruxa, ratificando os valores depreciativos em torno da personagem Joaquina
O uso do adjetivo garridice (1. Sofisticação no vestir; GARRIDISMO; JANOTISMO [ antôn.: Antôn.: deselegância. ]fonte: dic. Aulete. ) – traz um contra-ponto pois ao mesmo tempo em que se esforça para se apresentar bela , a atitude traz exageros que adicionam mais ainda aos valores do “ feia “ para a personagem.
O personagem Afonso - marqueteiro – não apenas vende  o  pó-de-arroz mas de acordo com o texto passa a ser um pó milagroso
A frase “ sonhando amores” comporá a idéia dos valores românticos que serão trabalhados e criticados dentro do texto, como podemos ler na sequência do texto abaixo:
As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e
digna do direito de aspirar a um bom casamento"—como ella pensava e dizia mui confidencialmente a certas amigas particulares.


Comentário

A leitura crítica sobre as pessoas ao redor de Joaquina nos revela a reflexão sobre a hipocrisia e reforça as questões sobre a aparência


Sempre houve maledicentes no mundo (salve a chapa!): foi por isso que uma d'essas amigas, tendo tido uma altercação com ella, retirou-se de seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa personagem pintava os cabellos, que, se não recebessem quotidianamente os respectivos affagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar soffrivelmente russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou,
suppoz equivaler aquella affirmativa a uma intriga motivada pela recente inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente.


Comentário

      Teremos no trecho abaixo a restrição dos valores da educação da D. Joaquina já fazendo uma contextualização crítica ao romantismo e suas convenções , destacando comportamentos femininos em torno do Reducionismo (educação reduzida a carta e lidas com tropeços)e destaca também a função da literatura romântica (mulheres sonhadoras e idealizadoras) e o spleen (vida-fardo-morte/morte-alivio-vida) começando dentro do texto um valor de desprezo pelo romantismo. 
      Teremos também a partir desta ênfase ao Romantismo o  lamento de D.Joaquina sobre um caso amoroso

      Mas Será que realmente D. Joaquina estava interessada em casar ou apenas em aventuras? Pois temos no texto uma citação ao romance de Ponson Terrail (criador do personagem Rocambole – o que importa é a aventura)


E sobre o personagem Guedes seria ele lúcido ou materialista? Celibatário ou hipócrita? Pois o mesmo terá uma
     relação com a cozinheira
    A situação de Guedes e sua cozinheira Belisária nos lembra a relação dos  personagens João Romão e Bertoleza do romance naturalista O Cortiço, publicado em 1890 -  portanto após Contos Paraenses. Nele Bertoleza era uma escrava que vivia amasiada com João Romão, homem ambicioso e avarento que a explorava. Como vemos há uma receita para o naturalismo.


A sra. d. Joaquina possuia uma educação mediocre, apenas sufficiente para conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto á educação moral; quanto á intellectual, lia com desembaraço e alguns tropeços prosódicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou três namorados que tivera antigamente.
Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu spleen de senhora entrada em annos e votada á lastimosa condição de tia. Ai! A pobre d.
Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade casado com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente por seus encantos, quando estes, ainda, sonhando desposar um joven barão, muito rico e elegante, como um que conhecera n'um romance do insípido Ponson du Terrail. O barão, porém, nunca appareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o Guedes, n'um momento de lucida reflexão, resolvera viver em calmo e economico celibato, apenas conservando em casa a Belisaria, cosinheira, mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe affagos cheios de faceiros quindins, nas horas de amor, e bôas tortas de camarões seguidas de compotas de delicioso bacury, á sobremesa.


Comentário

        O trecho a seguir temos uma  Ironia presente na contradição –  término dos namoros e a situação dos namorados e uma clara referência ao folclore – compondo uma oposição entre a Yara encantadora e D. Joaquina.
As referências aos costumes (uso da rede) e a culinária e frutas paraenses reforçam o caráter regionalista do conto. A linguagem e a ortografia também são registros vivos do final do século XIX. Tudo é carreado de sentido.

      Além de uma reverência ao Parnasianismo ( ilustre poeta João Penha )


Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jámais tivera informações exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se vagamente que um fôra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou, talvez pela seducção d'alguma yára encantadora. Do outro constava apenas que partira para seu paiz natal,—Portugal,—afim de ir saborear á lareira, nos longos serões de inverno,—quando o suão sibila em as grandeschaminés ennegrecidas,—os  succulentos nácos de paios da Beira,—d'aquelles paios tão glutonamente decantados pelo illustre poeta João Penha.


Comentário

       Na sequência abaixo temos a oposição entre os dotes (aparência)  de D. Joaquina e os de Francisco da Natividade.
Ele: sucedido x Ela: fracassada
Ele: elegante xEla: espalhafatosa, cafona
Questão? Qual a finalidade da oposição.
      Encontraremos a total indiferença de Francisco da Natividade
       E em contrapartida , através de Joaquina será enfocado o        comportamento típico das mulheres do século XIX (bordar, fazer renda, servir o homem)
     Mas ao mesmo tempo temos a postura avançada de D. Joaquina no que diz respeito as atitudes de cortejar o rapaz.

       Ella armava-lhe ratoeiras amorosas 

Questão? Quem é o rato?


Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a dizermos tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas e dulçurosas esperanças de captivar o rebelde coração do Francisco da Natividade, o elegante dono d'uma das melhores lojas da rua dos Mercadores.
Este, porém, parecia não partilhar das mesmas intenções, porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem estremecer, sem pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella armava-lhe ratoeiras amorosas: mandava-lhe flôres, fazia-lhe presentes de toalhas de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando elle ia á casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros accêsos aos charutos, roçando os dedos nos d'elle, para mudamente lhe revelar a sua paixão.
Contudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria rede de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus actos relativos ao bom andamento d'aquelle amor.

Comentário

     O narrador Ironiza os sentimentos de D. Joaquina no trecho a seguir. Faremos a reflexão se ela realmente estava abatida pelo insucesso amoroso. Teremos então a revelação do caráter de D. Joaquina . E a aproximação de Raul confirmando mais uma vez o seu comportamento avançado para as Senhoras da época, que na verdade acabavam sendo sempre motivos de chacotas.

“Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisória senhora”

Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal. A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia tão natural, attraíu as boas graças da digna solteirona, que logo sympathisou com elle. Em menos d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga sincera, uma attenciosa admiradora do "seu caracter austero."
Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos, desfazia-se nas mais requintadas delicadezas. Levada pelas erupções d'aquelle seu coração vulcanico, ella começou a amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio,
o Francisco da Natividade. Cedo surprehendeu o bom moço as amorosas manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o parente
sobre o affecto d'ella, para obedecer aos dictames do dever. Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisória senhora.


Comentário

      O texto apresentará a  doença de Raul –sintomas de tuberculose –doença associada aos românticos – ela representa a expressão física dos sentimentos, reconhecida no campo literário e artístico como a doença da paixão.
       Estaria o narrador a ironizar os  sentimentos de Raul , ou,  os de D. Joaquina? Quem é o romântico?



Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, já no Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pállido, perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma suffocação, seguida de agudas dôres na parte interna do thorax, as quaes communicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.
—Santo Deus, que vejo?!—exclamou o tio, assustado.—Já, um medico, depressa! continuou, a correr attonito pela sala....
O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou três recommendações sobre o tratamento.
Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém, teve uma verdadeira e forte hemoptysia. Lá foi o moleque chamar novamente
o doutor.
Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que
podesse. Assoberbado por tão assustadora recommendação, o bondoso Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete que
do Pará saíu seis dias depois.
No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando verdadeiras lágrymas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta
lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:
—Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o que lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus!
—Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim.... Adeus!
Chegando á cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso pé de restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, resguardando-se de tudo quanto podésse fazer-lhe mal. Estes uteis entretenimentos levaram-n'o a esquecer-se da sra. d. Joaquina.


Comentário
A crítica ao romantismo perpassa todo o conto, serve mesmo para explicar o temperamento débil da personagem e para ilustrar seu jovem amante. Mas somos surpreendidos, pois o romantismo é usado apenas como “armadilha”, para consecução dos desejos amorosos de D. Joaquina.
O percurso em busca do sentido do texto nos leva a analisar os inúmeros recursos estilísticos e linguísticos que o escritor manipula com maestria para significar seus intentos. Ele nos desafia a jogar. “Literatura é um jogo e na boa escritura nada é de graça.”.
O clímax do conto está no assunto da carta, que cercada de mistério e recomendações sobre sua abertura, cria expectativa, que é frustrada uma vez que Raul só a abre depois de alguns meses, evidentemente ele esquece porque estava doente e a carta estava num paletó que ele só usava quando viajava. Para sua desilusão o que ele mais gostava nela, era falso. Seus cabelos pretos e lustrosos eram assim devido a uso constante da ÁGUA CIRCASSIANA, mesmo Joaquina explicando que era para uma amiga, ele gargalha da sua inocência.
O autor nos prova que o Romantismo é tolo e foi superado pelo Realismo, o Raul é o herói romântico – bom moço, bonito, tuberculoso e idealista, D. Joaquina feia, medíocre, encalhada, mas astuta – ilude o jovem que se decepciona com ela – quando todas as evidências apontavam para a feiura e idade suficiente para ter cabelos brancos e com a visão obtusa dos românticos não viu a realidade. Para reforça a superioridade do Realismo sobre o Romantismo – ele faz alusão a vassalagem das cantigas de amor do Trovadorismo. Observe  a conversa dos dois no porto antes da partida de Raul.

              Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os medicos lhe recommendassem que não viesse ao Brazil, tratou de procurar emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se caixeiro viajante d'uma conceituada casa commercial, para ir fazer cobranças pelas provincias. Na véspera do dia em que tinha de seguir para a primeira excursão,—ao Alemtejo,—estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão no bolso d'um paletot que só vestia em viagem, encontraram seus dedos um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe déra a sra. d. Joaquina.
—Ah! que esquecimento o meu!—exclamou.—Que juizo não terá feito a meu respeito a impagavel senhora....
E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.
"Meu bom amigo,—leu.—Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito afflue-me aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o: amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração! (Isto copiou ella do romance A Caridade Christã, de Escrich,—pensou Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se fui por si acolhido o meu amor. (Aquelle fui é que era genuinamente d'ella, só d'ella; o Raul bem o conheceu). Espero ancioza a sua resposta, com a qual o meu amigo remeter-me-á meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do coração de sua eternamente,—JOAQUINA."
Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle modelo d'orthographia, propriedade de termos e syntaxe; mas, logo fez-se mais serio e:
—Ora bolas!—disse.—Só os cabellos encantavam-me, por serem tão pretos e lustrosos.... E era falsa aquella côr d'azeviche!.... Que desillusão!....


ESTUDO DO TEXTO
“ QUE BOM MARIDO”
Não desejarás a mulher do teu próximo.
MANDAMENTO DE DEUS.
Bonifácio e Elvira
       Elle era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo, de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivéra, —tempestuosa e poída nas orgias,—encanecera-lhe completamente os cabellos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde cruzavam-se numerosas rugas sobre a pelle cor de ginja.

            Comentário
O texto inicia com a descrição do personagem revelando que ele é  velho gordo e decrépito, puído das orgias e vermelho (cor de ginja), fruta excelente para licor, mas aqui associado ao rosto vermelho pela obesidade.
       Temos mais um personagem de aparência horrenda, vitima das consequências de uma vida desregrada.


Ella tinha dezoito primavéras,—para me servir d'uma velha expressão do romantismo;—ostentava uma carinha     faceira, risonha, d'olhos pretos e marotos. Têz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste da angélica, era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vadíos, - d’esses namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.
                      
              Comentário

    •       A outra personagem é assim apresentada:  Ela jovem,
            faceira, risonha, olhos marotos, ágil, malemolente se               
        contrapondo ao velho que é gordo. Temos também a
•       referência ao mundo animal: “duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova” – referencia ao mundo animal (zoomorfismo) - Cães Terra-Nova - uma raça de cães natural do Canadá, descendente geneticamente dos mastiffs. Sua personalidade, todavia, é diferente. O terra-nova pode ser considerado o cão mais paciente, tolerante e tranquilo de todos. Descrito como resignado, é um bom cão de companhia, já que gosta de participar das atividades familiares e aprecia a companhia humana.
•       A expressão “Flexível como haste da angélica”- explica-se porque  essa planta é indicada para desconforto digestivo como sensação de enfartamento e flatulência, males associados a velhice.

       

       Dispostas as coisas para a segunda refeição, ía sentar-se á machina de costura, que dava-lhe não diminuta receita para as despezas diarias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a qual lhes permittia de tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e um passeio a bond em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de Nazareth, algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e nova.


Comentário

      Temos referências a Belém e suas festas religiosas– teatro da Paz/ Círio de Nazaré/ festa de São João
     Neste conto mais uma vez nos deparamos com uma mulher de postura inesperada para os padrões  opressivos da Antiga Belém.
•       Elvira trabalha e tem certa independência financeira, pois para usufruir de algumas regalias é necessário somar o que ela ganha com o salario do marido, ou seja, o marido não dá conta de todos os gastos.


Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus adoradores,—rapazes toleirões, aos quaes ella, diga-se a verdade, não ligava muita importancia. Entre esses moços, quem mais assiduamente a requestava era um tal Jacyntho,—um leão conquistador que falava pelos cotovêllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias depois do casamento d'ella, por occasião d'um passeio a Benevides. Desde essa época, o pobre namorado sem ventura passava todas as tardes pela casa do Bonifacio, quando Elvira ía para a janella, emquanto o marido, na varanda, jogava o sólo com o taberneiro da esquina e o visinho da direita.
É que a interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que não podía se contentar com os sós affagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se áquillo a que chamava "uma distracção", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para commetter um crime.

Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo a esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança no futuro, que resolvería, com vantagem,—aquelle interessante problema de amor.



Comentário

      Elvira não dava importância aos assédios, mas ficava na janela justamente nos momentos em que o marido estava distraído jogando com a vizinhança.
      Observa-se a ironia em pobre rapaz sem ventura , ora o Jacyntho era o Leão, metáfora do rei das selvas, o forte o dominador em oposição ao velho cervo, Bonifácio.
       O Leão  apaixona-se por Elvira poucos dias depois do casamento dela.
      “não ligava muita importância”

         •       “Jacytho é o leão, e o leão, como outros felinos, é um caçador oportunista”, diz o biólogo Carlos C. Alberts, da UNESP de Assis, interior de São Paulo. Significa que estuda o terreno antes de atacar, é um estrategista. Tinha convicção de que presa seria abatida – Isso no remete ao Darwinismo “na natureza só sobrevivem os mais fortes”. O autor se utiliza de um aforismo popular para provar a teoria.

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                Uma tarde,—era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devéras admirado por ver que a sua querida não estava á janella. Olhou para os dois lados da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um só vivente se via.
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Comentário

      A rua não era bonita, pois o autor a compara com um cemitério abandonado imagina-se capim alto, flores secas, grinaldas velhas, cruzes caídas e cria uma antítese – mortos do cemitérios x viventes que não se via. –  para enfatizar a feiura e a desolação do lugar – que com a ausência da Elvira da Janela foi mais acentuada.

      Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou:
—Onde está a d. Elvira, minha filha?
A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, metteu na bocca o index da mão direita, conservando-se calada.
Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira?—insistía o leão fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.
Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da fregueza e disse, ainda meio acanhada:
—Está lá dentro....
—E o sr. Bonifacio?
—Saíu.
—Dou-te outro nickel se fôres levar uma carta á tua senhora, queres?
—Eu quero....
Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por cautella, não datára nem assignára. Entregou-a á mulatinha e conjuntamente outro tostão

Comentário
•       A mulatinha faz charme sedutor – ela curva a cabeça em direção ao peito ele coloca o dedo indicador na boca e cala-se. Jacynto compra-lhe  resposta de forma igualmente sedutora.
•     Perceba  os dissimulamentos e os disfarces da freguesa.
•       Enquanto o rapaz já tinha toda a estratégia traçada – a carta já estava escrita esperando por uma oportunidade


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       Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho não era-lhe indifferente, mas que devia abrir mãos áquelle amor, porquanto a sua "posição de mulher casada não lhe permittia tão gratas liberdades."
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         Comentário
•       Ela não nega a afeição por ele, na verdade gosta das liberdades, posto assim ela alimenta as esperanças mesmo sendo casada.
         D'então em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos d'aquelle. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscencias de muitas leituras romanticas deram causa á correspondencia criminosa.


Comentário
•       O autor justifica a atitude adúltera de Elvira às leituras românticas. Joga toda a culpa do crime no romantismo


       Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões além d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente
Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa, de volta d'uma visita que fôra fazer a seu chefe de secção. Transpondo o limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a attenção de velho curioso.
—Que levas ahi?—perguntou.
—Não é nada....—respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos paraenses.
—Não mintas! Eu vi não sei quê!—bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo braço e apoderando-se do objecto.
Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu:
"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vae ouvir a missa do gallo em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha á 1 hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja.
ELVIRA.»

O Bonifacio subiu ao arame; ficou da cor da purpura e sentiu uma violentíssima dor de cabeça. Teve ímpetos ardentes de ir assassinar a esposa infiel; refletiu, porém, e socorreu-se d'um alvitre que lhe apareceu a súbitas no espirito com rubros lampejos de sanguinária vingança.


Á 1 hora, um vulto apareceu na esquina, approximando-se a passos ligeiros até chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas. Respondeu-lhe do interior um leve arruido. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregosando os prazeres que ía fruir na conversação de Elvira, quando subitamente exhalou um grito, dando um salto para o lado.
Era o respeitavel sr. Bonifacio, que saíndo de traz da mangueira onde occultára-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivéra a lembrança de namorar-lhe a mulher.
Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a sova-lo fortemente, n'uma agitação febril....
O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos haviam saído para a missa do gallo.
Quando cançou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense, despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que achava-se por terra, com os ossos quasi moídos:
—Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! Não torne a caír na asneira de namorar moças casadas!
E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida de medo.


         Comentário:


        Temos ao final uma inversão - o velho puído se transforma em Leão – arma uma estratégia, bate, persegue e imobiliza a presa.
       Ele vira fera e quando a presa tá no chão ele ...despedindo olhares terríveis para todos os lados, tal como as feras quando com suas presas abatidas quer certificar-se de que não serão incomodas.
      Mais uma vez o autor nos diz que as aparências enganam. A inteligência está com quem se julga mais fraco.