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terça-feira, 27 de novembro de 2012

LEITURA DA UEPA 3 - CLARICE LISPECTOR - O OVO E A GALINHA - primeira análise






O texto “O ovo e a galinha” pertence à obra A legião estrangeira (1964), de Clarice Lispector.
Na comunicação “Literatura e magia”, que a autora preparou para o Primeiro Congresso Mundial de
Bruxaria, realizado em Bogotá, em 1975, mas acabou não lendo, reportando-se ao “O ovo e a
galinha”, escreveu: “Este texto é misterioso até para mim mesma e tem uma simbologia secreta”.

E agora alunos e alunas do Gil ? Simbologia Secreta ???

Mas vamos analisar...

Aquele que olha um quadro está, por outro lado, habituado demais a descobrir uma “significação”, ou seja, uma relação exterior entre suas diferentes partes. Durante o
período materialista, todas as manifestações da vida e, por conseguinte, também da arte, formaram um homem que é incapaz – sobretudo se se trata de um “entendido”
– de se colocar simplesmente diante do quadro e que quer encontrar nele toda espécie de coisas (imitação da natureza, a natureza através do temperamento do artista, portanto, esse temperamento, um simples estado de alma, “pintura”,
anatomia, perspectiva, um ambiente, etc). Jamais busca sentir a vida interior do quadro, deixar que ela atue diretamente sobre ele


O conto O ovo e a galinha, por exemplo, apresenta os elementos
mínimos de uma narrativa: narrador - que também é personagem -, ação e
sucessão temporal. A primeira frase do texto atesta isso: "De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo". Há precisão de tempo e de lugar, aí estão sujeito e
objeto do enunciado. A presença desses elementos mínimos, porém, não impede
que esse seja um dos textos mais instigantes da escritora Clarice Lispector. Eles
funcionam, em realidade, como uma armadilha ao leitor, que, aparentemente de
posse das ferramentas da narrativa tradicional, é jogado em um fluxo vertiginoso
de idéias e colocado face ao que Eliane Zagury chamou de "o stream of
consciousness mais puro que a língua portuguesa viu".96
O fluxo ao qual é lançado o leitor e que sustenta a organização do
texto nasce da diluição dos limites temporais, atestado pelo próprio narrador:
Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo
e já se torna ter visto um ovo há três milênios. - No próprio instante de se ver o ovo ele é a
lembrança de um ovo. - Só vê o ovo quem já o tiver visto. - Ao ver o ovo é tarde demais: ovo
visto, ovo perdido. - Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. - Olhar curto e
indivisível; se é que há pensamento; não há, há o ovo.
A percepção vive em um lapso originário, lembra José Miguel
Wisnik, fazendo com que, no instante mesmo em que um objeto é percebido por
um dos sentidos humanos, esse ato perceptivo já seja um ato passado. O reflexo
disso para a arte literária é que há, sempre, uma distância entre o ver e o contar, o
pensar e o escrever. Tal distância elimina, então, a possibilidade da plena
representação objetiva do real. O narrador não se empenha em contar, passo a
passo, aquilo que vê. Ele empenha-se na tentativa de reproduzir a repercussão
daquilo que foi visto. Por isso, a prosa de O ovo e a galinha tem um ritmo frenético;
ela condensa idéias e imagens e reitera-as, como se tentasse não perder de vista o
objeto desencadeador da visão e da narração; as frases sucedem-se rapidamente,
não se observa a presença de processos subordinativos muito complexos, e a
estrutura sintática das orações é a básica, construída em torno do sujeito e do
predicado. Por meio de linguagem tão singelamente construída, a qual conjuga a
aprendizagem verbal pela criança e
... a mais audaciosa elucubração especulativa, a narrativa
tenta pensar ao mesmo tempo o pensamento e o pensado, o sujeito o o objeto (...) Por aí
revigoram-se o sujeito que vê e o visto, o visível, evidenciando o avesso da banalização que
tende a conduzir a vida atual em seus modos estandartizados de ação e de percepção.
Abolição do tempo cronológico para reiventá-lo em sua plenitude voraz.
Não parece difícil associar o movimento rápido e por vezes
desordenado de textos como O ovo e a galinha ao mundo contemporâneo. Um
olhar que vaga do ovo-objeto ao sujeito, que enxerga na galinha o disfarce do ovo
e dela parte para voltar ao "eu" é um olhar acostumado ao excesso. O homem
contemporâneo tem muito o que ver, seus sentidos são constantemente evocados
e, por isso, eles, muitas vezes, ficam anestesiados. De tanto que há para ver,
desaprende-se a olhar.

O conto é um  “verdadeiro tratado poético sobre o olhar”, que “não se limita a comentar as vicissitudes do olho e do pensamento diante da coisa, mas cifra na própria escolha do objeto uma espécie de circularidade enigmática do olhar”. Após ressaltar a simbologia da palavra ovo, destacou que “mesmo assim, prototípico, alegórico, marca sublimada e apagada de um real que hesita entre a consciência e o inconsciente, o eu e o Outro, o ovo não deixa de ser, no conto de Clarice Lispector, o ovo doméstico, cotidiano”.
 
A galinha “tonta, desocupada e míope”, que “com o coração batendo, com o coração batendo
tanto” não reconhece o ovo, assemelha-se à protagonista que ressalta: “Já me foi dado muito; isto,  por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei”. 

Ainda sendo um nome, ainda sendo "ovo", este terá, até o fim do conto, significação ilimitada,
reaparecendo sempre, objeto visível de significado indizível.

Nos últimos parágrafos o narrador volta à realidade. Como começou a narrativa ele a termina. O ovo que estava sobre a mesa e que provocou toda essa reflexão, estava agora na frigideira pronto para ser comido pelas crianças que saiam de todos os lados. "Viver é eternamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir. Viver é fazer, é fazer rir dos mistérios, o meu mistério é de eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades."

O texto continua dissertando sobre a vida cotidiana, dos trabalhos, das liberdades, da corrupção. E também o tempo que me deram e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecidas do ovo (ovo-vida).


ALBÓNICO, Consuelo Miranda. Clarice Lispector - diccionario intimo. Santiago:
Editorial Cuarto Propio, 1993.
BOSI, Alfredo. Clarice Lispector. In:____.História concisa da literatura brasileira.
2ªed. São Paulo: Cultrix, 1980.
__. A paixão de Clarice Lispector. In: CARDOSO, Sérgio et al. Os sentidos da
paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CAMPOS, Maria do Carmo. Clarice Lispector e a vida danificada. In: DUARTE,
Constância Lima (Org.). Anais do 5º seminário nacional mulher e literatura. Natal:
Editora da UFRN, 1995.
CAMPOS, Maria do Carmo & PETERSON, Michel (Orgs.).Clarice Lispector: Le
souffle du sens. Études françaises. Montréal: n. 25, 1989.


quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O PRANTO DE MARIA PARDA - Gil Vicente



CONTEXTO HISTÓRICO   -    A ÉPOCA DA PRODUÇÃO DO TEXTO

Vem a obra intratextualmente datada de 1522: na triste era de vinte e dous desd’o nascimento . Na cronologia vicentina terá sido composição de uma época em que o autor já não fazia os autos de el-rei D. Manuel (falecido em Dezembro de 1521) e ainda não fazia os de D. João III. Luciana Stegagno Picchio fala dum Gil Vicente desempregado do paço, devido ao luto, e atuando nas ruas de Lisboa, mais perto do povo

O Pranto de Maria Parda é uma das mais célebres peças de Gil Vicente. Intencionalmente, o grande dramaturgo, retratou a realidade das classes pobres de Lisboa, no Século XVI. Contrariando os discursos que enalteciam e louvavam a beleza e opulência da capital de um imenso império, Gil Vicente procura desvelar a vivência dos negros e mestiços chegados e nascidos na metrópole que, em Quinhentos, calcula-se que perfaziam 10% da população de Lisboa. Muitos eram alcoólatras,  deprimidos pela sub-vida serviçal e sem perspectivas de futuro a que estavam votados. Vêm-se carnalizados na figura literária de Maria,  corrosiva e observadora da sociedade, amante do vinho . Podemos imaginar apenas o impacto que o monólogo terá tido na corte e junto do monarca; quando se viu defronte de atrevida mestiça, da base da pirâmide social, para mais mulher, mais a mais sexualmente livre, assumir, entre canadas de vinho, uma das mais lúcidas e desesperançadas críticas à sociedade lisboeta .

Gil Vicente coloca sua Maria Parda na região da Praça da Sé... “Seca, desgrenhada, escura...” Uma Maria Parda que acreditamos ser um símbolo, uma representação metafórica da realidade de Lisboa àquela época... Época de fome e miséria, acarretadas pela seca que assolou o país no ano anterior, devastando as vindimas

(As vindimas representam uma época do ano singular em Portugal que abrange todas as atividades que decorrem entre a apanha da uva e a produção do vinho. Depois da poda em Janeiro, dá-se a formação dos cachos na Primavera e é durante o Verão que as uvas ganham cor, aroma e paladar. Entre Setembro e o Outubro, quando as uvas já se apresentam maduras, ou seja, quando o seu peso, cor e acidez apresentam as condições ideais para a produção do vinho, decorrem as vindimas)

e vitimando a população de fome ou deixando-a passar grande necessidade.

Neste sentido, evocando o que afirma Paul Téyssier, a falta de vinho relaciona-se metaforicamente com a falta víveres em geral, comum à época e agravada pela seca. Integrado neste contexto, o Pranto de Maria Parda reveste toda a sua significação, levando, então, este autor a indagar:
Como não ver que Maria Parda a morrer à sede, é a imagem invertida dos desgraçados que morriam à fome? Todavia, Maria Parda é uma velha, uma bêbeda, e mais ainda: uma mulata. Por isso é necessariamente ridícula, seu desespero é cômico, seu testemunho burlesco. A personagem faz rir – e isso é uma maneira de exorcizar o drama da fome. Por conseguinte, o texto se revela uma paródia pertencente ao "mundo às avessas" no estilo da chocarrice popular, esconjura e elimina o sofrimento e a morte  (TEYSSIER, P. (1982), p. 132.  )

Eu so quero prantear
Este mal que a muitos toca;
Que estou ja como minhoca
Que puzerão a seccar.
Triste desaventurada,

“Lisboa era uma cidade mulata, cheia de gente vinda da Guiné. Maria Parda personaliza a escrava negra que sucumbe ao alcóol”,  E que por ser mulata se chama Parda,

.

A TEMÁTICA CENTRAL


Estará em discussão neste estudo aquilo a que se poderá chamar a teatralidade intrínseca da obra de Gil Vicente que anda com o nome de Pranto de Maria Parda .  Maria Parda lamenta-se pela falta de vinho nas tabernas de Lisboa, evocando os tempos em que ele era abundante e barato. Depois, resolve pedir o vinho fiado a alguns taberneiros que lho negam. Por fim, decide morrer e pronuncia um extenso testamento que se refere obsessivamente ao vinho.




OS PERSONAGENS DA OBRA –                                   MARIA PARDA E OS TABERNEIROS


MARIA PARDA

Maria Parda é personagem feminina, o que é raro no género monólogo dramático de então . Ela faz parte das comadres vicentinas velhas, todas personagens de teatro Maria Parda sofre ainda a caracterização de beberrona. Se juntarmos tudo o que vai caracterizando Maria Parda obteremos um conjunto extraordinariamente variado:






A descrição realista do corpo velho e doente

Triste desdentada escura,
Quem me trouxe a taes mazelas!
Oh! gengivas e arnellas,
Deitae babas de seccura;
Carpi-vos, beiços coitados,
Que ja lá vão meus toucados,
E a cinta e a fraldilha;
Hontem bebi a mantilha,
Que me custou dous cruzados.

No texto sobressai a figuração da velhice. À personagem convencional do beberrão preferiu Gil Vicente a da velha, menos apta para a sátira e mais naturalista. Personagem da tradição popular (em Itália, por ex., nos cantos de vinho; em Portugal, na festa de Santa Bebiana), não é aqui apenas um tipo cômico, ou de farsa, semelhante a outras comadres velhas, mas é essencialmente um corpo seco, pronto para morrer. Dele emana uma fala que funciona como o seu prolongamento, a sua expressão fisiológica e natural.

O corpo de Maria Parda mostra-se grotesco; envelhecido (triste desdentada escura, arnelas, orelhas engelhadas), doente (mazelas, olhos fora, postema no beiço, a dor da enxaqueca) e, acima de tudo, oco e seco (deitai babas de secura, ventosidade, hei de estalar, tão seco trago o embigo, morrer de sequia, assi vazia, sem gota de sangue nas veas, não tens já que mijar).
Predomina o motivo da sede e da secura, que se estende a todas as coisas e seres: os tonéis secos, a louça e as pipas vazias, a Ribeira areeira.

Comentário do Prof. Gil Mattos : Assemelham-se as imagens do corpo gretado da terra e do de Maria Parda, até na cor cinza. Ao evidenciar o corpo da velha, Gil Vicente naturaliza-o e identifica-o simbolicamente com a própria terra que se encontra velha, doente, seca e parda, a necessitar de ser renovada com o líquido regenerador: a água. Repare-se que as partes e as funções orgânicas nomeadas são sempre as correspondentes a necessidades primárias e naturais: as escatológicas (ventosidade, traques, mijar) e as alimentares (beiço, gorgomilo, engolir, fartar a tripa).
Para lá da coisificação compulsiva, uma criatura parda; simultaneamente pária, perdida e deambulando com desespero na solidão, procurando uma voz que não responde: - "Não sei que faça..." – diz. "Quem quer fogo, busque lenha!" – troça de si. Opressão auto-infligida, é um retrato e metáfora da fragilidade humana.



Assistimos ao caminhar e cortejo de Maria Parda pelas ruas dos bairros orientais de Lisboa, ou, ao invés, ao desfile dessas ruas, magicamente convocadas pela aflitiva apóstrofe de Maria Parda ao nomeá-las: Rua de S. Gião, Travessa de Mata-Porcos, Carnecerias, Rua da Ferraria, Biscainha, etc. Usando máquinas, poder-se-ia fazer rodar diante dos olhos do espectador cada uma das ruas e tabernas interpeladas em cada estrofe. Seriam as praças e vielas a passar por Maria Parda e não esta a atravessá-las. Mas também ela se move,


Comentário do Prof. Gil Mattos
Aproximando-se irônica e parodisticamente da liturgia do teatro religioso, a personagem empreende uma nova via crucis, desta vez ao vagar, solitária, pelas ruas de Lisboa, padecendo pelas tavernas de que outrora fora freguesa habitual, mendigando a bebida ora negada.


quero m’ir às taverneiras : Vai-se a Branca leda, Vai-se a João do Lumiar, indo pera casa de Martim alho.


Oh Rua de San Gião,
Assi ‘stás da sorte mesma
Como altares de quaresma
E as malvas no verão.
Quem levou teus trinta ramos
E o meu mana bebamos,
Isto a cada bocadinho?
Ó vinho mano, meu vinho,
Que ma ora te gastamos.
   O’ travéssa zanguizarra
De Mata-porcos escura,
Como estás de ma ventura,
Sem ramos de barra a barra.
Porque tens já tantos dias
As tuas pipas vazias,
Os toneis postos em pé?
Ou te tornaste Guiné
Ou o barco das enguias.
   Triste quem não cega em ver
Nas carnicerias velhas
Muitas sardinhas nas grelhas ;
Mas o demo já de beber.
E agora que estão erguidas
As coitadas doloridas
Das pipas limpas da borra;
Achegou-lhe a paz com porra
De crecerem as medidas.
   O’ Rua da Ferraria,
Onde as portas erão mayas,
Como estás cheia de guaias,
Com tanta louça vazia!
Já m’a mim accoteo
Na manhan-que Deos naceo,
A’ hora do nacimento,
Beber alli hum de cento,
Que nunca mais pareceo.
   Rua de Cata-que-farás,
Que farei e que farás!
Quando vos vi taes, chorei,
E tornei-me por detras.
Que foi do vosso bom vinho,
E tanto ramo de pinho,
Laranja, papel e cana,
Onde bebemos Joanna
E eu cento e hum cinguinho.



OBSERVAÇÃO  IMPORTANTE Ocorre aqui o argumento de natureza extratextual a favor da teatralidade intrínseca desta peça vicentina. A similaridade existente entre esta estrutura de deslocação cênica e a cerimônia dos prantos fúnebres na capital, em Dezembro de 1521, quando morreu D. Manuel: o cortejo desfilava por certas ruas de Lisboa e parava em pelo menos três lugares definidos, onde se quebravam os escudos (equivalentes sérios, não carnavalescos, das tabernas que Maria Parda visita); os trajes eram mantos negros (Maria Parda vai emburilhada numa manta); e grandes eram as manifestações de dor (não menores que as de Maria Parda). Vem ao pensamento a comparação entre o PMP e o pranto de D. Manuel, do qual aquele seria então uma espécie de reverso parodístico, irreverente, cómico e satírico.

OS TABERNEIROS
Se olharmos de perto cada um dos seis taberneiros, com falas de apenas nove versos, dos quais três ou quatro são obrigatoriamente ocupados com provérbios, deparamos com uma caracterização bem concreta de alguns deles: a Falula mostra-se grosseira, João Cavaleiro é cristão-novo, Branca Leda só fala de comida. Estes taberneiros lisboetas funcionam ainda, note-se, como uma espécie de coro que comenta as súplicas de Maria Parda.




IMPORTANTÍSSIMO
Regras de vida estão contidas nos provérbios escolhidos por Gil Vicente. Os diferentes taberneiros encarnam traços coletivos do grupo e recusando dar o vinho fiado que lhes pede Maria Parda, respondem com provérbios que traduzem a sabedoria popular: cada coisa a seu tempo, nada se consegue sem esforço, aquele que pede com frequência, é inoportuno. São propostas, receitas e conselhos de comportamento, ditados pelo senso comum. Nas mãos de Gil Vicente este material, pertencente ao código ético oral, apresenta-se, como vimos, de muito variadas formas.

Os provérbios identificados e comentários sobre os mesmos

 Teremos muitos provérbios ao longo do texto. Disponibilizo aos alunos do Prof. Gil Mattos uma tradução com atualização do sentido para a compreensão de alguns destes provérbios.


-“Bem passa de goloso o que come o que não tem”.

Sentido figurado:


“A mula com matadura, nem cevada nem ferradura” .

Sentido figurado:.

-“Em tempo de figos, não há amigos”

Sentido figurado:.


-“Nos ninhos d' ora a um ano, não há pássaros ogano”.

Significado literal: < Nos ninhos do ano passado não há pássaros hoje
Sentido figurado: < Explica terem sido inteiramente vãs as esperanças daquilo que se pretende o se procura. Alude à instabilidade das coisas terrenas.>


“Quem muito pede, muito fede".

Sentido figurado:< Aquele que pede é inoportuno por maçador.>


-“Quem quer fogo, busque a lenha”

Sentido figurado:< Manifesta que para conseguir o que se deseja é necessário passar trabalhos e diligências. Nada se consegue sem esforço.>

- “Quem sua burra mal apea, nunca a vea.

Significado literal:
Sentido figurado:


-“Tudo tem seu tempo e a arraia no Advento”

Sentido figurado:

-“Una cosa piensa el bayo, y otra quien lo ensilla”.

Significado literal:
Sentido figurado:







SIMBOLOGIAS NO TEXTO

Sistemáticas são também as referências vegetais à árvore vital, associada à presença do vinho nas tabernas, com a nomeação dos seus ramos, da sua verdura e até das suas espécies (pereira, pinho, maias). Essa árvore aparece gravada nas vinhetas de quase todos os folhetos impressos. Ela e o corpo de Maria Parda, bem como os seus ditos, assinalam o ciclo da vida, do
nascimento à morte, passando pela doença: que má hora me paristes, bicos de minha mama, a madre caída, os tramos da peste. Nos três versos que se seguem, patenteia-se o contraste e a proximidade entre a vida e a morte:

com esta sede tão viva
que já não acho cativa
gota de sangue nas veas.

Também a terra não acha o humor, o suco subterrâneo que fará germinar o seu grão, ou seja, a chuva que terá que cair do céu.
O ciclo da vida humana, aqui rematado com a morte de sequia, aparece intimamente ligado com o da vegetação e o das estações do ano, próprios da natureza agrícola e designados segundo o ciclo litúrgico: avento, nacimento,
coresma, paixão, verão, eiras.

O TEMA DA MORTE
Encontramos o tema da morte, em primeiro lugar, no plano enunciativo: o pranto, o diálogo __ derradeiro debate  __ e o testamento.
Em segundo lugar, no plano narrativo: a doença da falta só acabará com a morte, no pós-morte.
Em terceiro lugar, no plano semântico e vocabular: Maria
Parda alude repetidas vezes à morte, pela referência à candeia de azeite (rito de morte mas também metáfora do vinho), e, no testamento, abunda o léxico fúnebre.
É sabido que o teatro deu continuidade ao simbolismo dos ritos agrários e à sua imitação lúdica, como a deu aos grandes temas da luta e sucessão entre a morte e a vida, entre as calamidades e a expulsão do mal pela morte, entendida como sacrifício propiciatório à resolução de uma grande desgraça coletiva. Neste caso seria a seca da terra e a fome dos moradores de Lisboa e dos que chegavam à capital em busca de pão, morrendo nas suas ruas

Do cruzamento de todas estas linhas de significação pode concluir-se que o texto vicentino realiza a personificação alegórica e a dramatização do próprio ciclo da vida e da morte, incluindo as catástrofes naturais, sociais e económicas: estas
 últimas como que se naturalizam.

Para que a chuva apareça, a terra frutifique, a vida renasça, Maria Parda terá que perecer, pois encarna tanto a fome colectiva como a terra velha e exangue, o ano seco e estéril, a própria morte.
Neste sentido, a morte de Maria Parda, no inverno de 1522, adquire o valor catártico de afastar o mal da seca e de atrair o bem da chuva. Então poderá brotar a abundância, pintada em dimensão gigante no apoteótico testamento de vinho. O vinho estará pela própria vida __ o sangue nas veas que falta à Maria Parda __ e não só pelo pão necessário à vida.

No Pranto de Maria Parda, se revelam na encomenda da alma feita pela personagem a Noé e não ao próprio Deus. A razão para tanto não reside não no fato de este ser um dos patriarcas do antigo testamento, mas sim aquele que plantou a primeira vinha, tornando-se, por conseguinte, o primeiro homem a se embriagar, segundo as Sagradas Escrituras.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
SARAIVA, Maria de Lourdes. “Introdução e notas”, In: VICENTE, Gil, Sátiras sociais. Lisboa: Europa-América, s. d.
TEYSSIER, Paul. Gil Vicente – o autor e a obra. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982.
VICENTE, Gil. Obras de Gil Vicente. Porto: Lello & Irmãos, 1965.

SARAIVA, Antônio José. Gil Vicente e o fim do teatro medieval. Lisboa, Gradiva, 1992.