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segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A PATA DA GAZELA - José de Alencar



José de Alencar –
A Pata da Gazela
José de Alencar, advogado, jornalista, político, orador, romancista e teatrólogo, nasceu em Mecejana, CE, em 1o de maio de 1829, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 12 de dezembro de 1877. É o patrono da Cadeira n. 23, por escolha de Machado de Assis.
Sua obra é da mais alta significação nas letras brasileiras, não só pela seriedade, ciência e consciência técnica e artesanal com que a escreveu, mas também pelas sugestões e soluções que ofereceu, facilitando a tarefa da nacionalização da literatura no Brasil e da consolidação do romance brasileiro, do qual foi o verdadeiro criador. Sendo a primeira figura das nossas letras, foi chamado “o patriarca da literatura brasileira”. Sua imensa obra causa admiração não só pela qualidade, como pelo volume, se considerarmos o pouco tempo que José de Alencar pôde dedicar-lhe numa vida curta. Faleceu no Rio de Janeiro, de tuberculose, aos 48 anos de idade.

O romance A Pata da Gazela foi escrito baseado no conto A Cinderela. O autor aproveita-se do enredo, no qual uma jovem, ao entrar apressada dentro de uma carruagem, perde um par de seu sapato, que é encontrado por um rapaz. Inquietado pelo calçado, ele sai à procura da dona do objeto, não desistindo até encontrá-la. A partir daí, o romancista desenvolve seu enredo, um texto irônico e crítico sobre a sociedade brasileira do século XIX. O livro é a tentativa de José de Alencar de mostrar como o amor deve ser, não pela plástica como o de Horácio, mas pela alma como o de Leopoldo.

Outra dimensão de um romance é sua historicidade, isto é, seu caráter de objeto produzido num determinado momento histórico, destinado a ser consumido por um público de características específicas e fruto de uma concepção de literatura muito peculiar.
Alencar fornece ao público os ingredientes que este estava habituado a consumir e com os quais costumava se identificar: o meio social é a alta roda carioca, em que as mulheres são belas, ricas e apaixonadas; os homens galantes dançam e freqüentam a ópera. É, portanto, na alta burguesia brasileira do século passado que Alencar constrói o romance que, em si, repete a velha fórmula do triângulo amoroso.

Linguagem

Além do tom irônico e crítico, o autor também usa sempre expressões galicizadas (adaptações do francês), ao invés de usar palavras francesas, uso comum da época, nacionalizando assim a linguagem.

Enredo

A história se passa na cidade do Rio de Janeiro, em pleno século "burguês". Amélia, uma mulher bela e rica, vai ser disputada por Horácio e Leopoldo.
Horácio, homem elegante não só no traje como em no trato pessoal, poderia ser considerado um dos príncipes da moda, um dos leões da Rua do Ouvidor.
Cansado de suas aventuras amorosas, apaixona-se e sai à procura de uma misteriosa mulher portadora de um minúsculo pezinho e dona da delicada botina que encontrou na rua, deixada cair por um lacaio que passara correndo por ele.
Leopoldo, pouco favorecido e respeitado de beleza, simples no vestir, trajava luto pesado não só nas roupas negras como na cor das faces e na mágoa que lhe escurecia a fonte, pela perda da irmã.
Virgem de amores femininos, apaixona-se pela dona do sorriso que viu em uma carruagem.
Horário, conhecedor dos corações das mulheres, acreditava que elas eram uma obra suprema. O amor não tinha novidades nem segredos para ele. Sofria imaginando se algum sapateiro com suas mãos aleijadas tomavam medidas de seu adorado pezinho.
Assim corria espetáculos e bailes, tentando descobrir por baixo da orla do vestido o ignoto deus de sua adoração.
Num teatro encontra-se Amélia com sua prima Laura. Leopoldo decidido a conservar o luto, estava presente e pede informações sobre as moças a Horácio, pois sua paixão continuava intensa e ardente.
Leopoldo, encontra as moças subindo na carruagem e apressa o passo. Fica imóvel, seus olhos viram um aleijão, um pé disforme.
Amélia após vários encontros com Horácio, na casa de D. Clementina que gosta de reunir moças, formando pares para dançar, foi pedida em casamento. Amélia pede um prazo de 15 dias antes de dar a resposta.
Leopoldo soube da notícia com mágoa mas sem se perturbar, amaria unicamente sua alma, essa ninguém poderia roubar, porque Deus a teria feito para ele.
Findo o prazo, Amélia tinha ares de quem sucumbia ao compromisso contraído. Num baile escuta Horácio falando a Leopoldo que não sentira antes a menor comoção ao ver



Amélia. Mas quando soube que a ela pertencia o tesouro, a botina, adorou-a.

Horácio conta-lhe sua versão, o vulto confuso, o defeito que

ela tinha: um pé aleijado.
Amélia sai do baile e convida Horácio para ir a sua casa. O moço encontra-a bordando, e na conversa ela esconde as lágrimas. Lançando um olhar para a moça, viu alguma coisa que o sobressaltou. A fimbria do vestido suspensa descobria o pé da moça, o moço estremeceu: era o aleijão. A moça foge da sala.
Sentindo a necessidade de sair da posição difícil em que se achava, dirigiu-se à casa de Amélia, procurou manter um clima de guerra, pois ficou sabendo que a moça encontrava-se com o Leopoldo na casa de D. Clementina. O rompimento era infalível, compreendera que tudo acabara.
Horácio aproxima-se de Laura achando que o misterioso pezinho lhe pertencia. Aproxima-se e freqüenta a casa da família e lhe faz crer que se aproximou de Amélia para vê-la.
Amélia vai às compras com sua mãe e encontra o Leão, e disfarçadamente deixa à mostra pousados na calçada dois pezinhos mimosos que palpitavam dentro de botinas de merinó de cor cinza. Horácio fica pasmo.
Amélia e Laura eram primas e amigas. Laura usava sempre roupas compridas, disfarçando os pés disformes. Amélia tinha dois pezinhos de fada, os dedos pareciam botões de roca. E para poupar a prima do constrangimento, Amélia encomendava os sapatos na rua onde Horácio encontrou a botina perdida.
Foi quando decidiu manter Horácio à prova, colocando a botina monstruosa de sua prima. Excitou o horror em Horácio.
Aproxima-se de Leopoldo, convidando-o a freqüentar a sua casa, e conta-lhe que escutou a sua conversa naquela noite do baile.
Horácio descobre seu engano e resolve reconquistar Amélia. Encontra com Leopoldo, um cavalheiro mudado, boas maneiras com sóbria elegância, e sabe que só o amor traz estas transformações.
Não desiste, e indo a sua casa presencia o enlace de Amélia e Leopoldo, que o fazem sem prévia antecipação.
Leopoldo casa-se sem saber que a noiva não era um aleijão e esta prepara-lhe uma surpresa, exibindo seus dois pezinhos divinos, de onde apareciam as unhas rosadas.
Termina o romance com Horácio falando: O leão deixou que lhe cerceassem as garras; foi esmagado pela pata da gazela.
A PATA DA GAZELA – ESTUDO DO TEXTO
O processo narrativo

Apresenta o foco narrativo em terceira pessoa, o narrador a emoldurar a história é onisciente e sua visão, portanto, é constante em toda a obra. Ele descreve as personagens, exibe os ambientes, tece comentários críticos sobre as personagens e sobre o pensamento da época. Ao exibir suas personagens, Alencar, vai revelando aspectos do momento histórico em que a obra é construída e seu pensamento crítico sobre esse momento




Os personagens e sua caracterização

Horácio
O moço tem um nome conhecidamente clássico. Há, além do nome, uma forte relação de Horácio com a cultura Clássica. Conforme ele vai sendo exposto pelo narrador, vai se percebendo seu apego à beleza, à forma, à estética, à cultura Clássica, bem como seu pensamento racional



e seu amor ao corpóreo. A esse aspecto do perfil de Horácio já há observações negativas do narrador. Há de se considerar, nessa associação entre Horácio e a cultura Clássica, a presença de um pensamento norteador do Romantismo: a postura oposicionista dos românticos ao pensamento Clássico. Postura essa dos românticos europeus, mas que, com certeza, deixou laivos nos autores brasileiros considerados românticos. Horácio é a personagem que reúne as características mais repudiadas e combatidas nos romances de Alencar: o vazio da personalidade, o caráter fraco, o materialismo, a frieza e o pouco apego à produção, ou seja, ao trabalho. Em resumo é uma personagem que tem sua identidade na sociedade de consumo, nas relações venais dessa sociedade, na ostentação. É um ser literário que segue religiosamente os mandamentos da alta roda burguesa do século XIX, um fantoche dos mandamentos e dos luxos da sociedade de consumo da época, como tantos outros moços frajolas. Sua relação com as outras personagens da obra oferece importantes leituras. Comecemos observando as fortes palavras do narrador ao tratar a personagem analisada nesse momento:

Ninguém imagina que belos talentos sorve essa voragem do mundo, que chamam a
vida elegante.
São como árvores luxuriantes que se vestem de linda folhagem, e consomem toda a
seiva nessa gala estéril e efêmera. Nunca eles dão fruto, nem sequer flor.
Horácio de Almeida era uma de tantas inteligências desperdiçadas no incessante
bulício da moda . (ALENCAR, 2002, p. 17)
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Comentário do Prof. Gil :

Ao retratar Horácio, o narrador retrata um segmento da sociedade da época de Alencar e, claramente, o contexto social maior em que esse segmento (dos moços da moda) está inserido. Nessa inserção do “leão” em um contexto social, há uma tentativa de uniformização dessa personagem, um cruzamento do pensamento e dos hábitos venais, consumistas da burguesia fluminense. É pertinente, aqui, o esclarecimento sobre o termo empregado pelo narrador para se referir a Horácio – “leão”. O termo pertence à época em que a história é narrada, ele designa os moços elegantes e namoradores, os rapazes da moda que ostentam as conquistas amorosas. Nesse termo, está um dado revelador da posição e da postura social de Horácio.
Continuando, a exposição das relações humanas na sociedade comercial regida pela posse de bens é, sem dúvida, o maior interesse do narrador construído por José de Alencar. O discurso do narrador sobre a paixão material, o amor exótico de Horácio pelo delicado pé de uma dama desconhecida corroboram esse interesse maior do autor pela dança citadina do século XIX:
                                     
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As extravagâncias de Horácio, contemplando a botina, verdadeiras infantilidades de
homem feito, bem revelavam a agitação dessa existência, embotada para o
verdadeiro amor e gasta pelo prazer.
Não se riam, homens sérios e graves, não zombem de semelhantes extravagâncias;
são elas o delírio da febre do materialismo que ataca o século,
Essa paixão de Horácio, o que é senão aberração da alma, consagrada ao culto da
matéria? A voracidade insaciável do desejo vai criando dessas monstruosidades
incompreensíveis. (p. 20)

O autor, dentro de sua lógica, explica o comportamento fetichista de Horácio, seu vazio,a sua alma desgastada pelos prazeres fúteis da vida social e sua capacidade de amar limitada.Alencar explica as extravagâncias de Horácio como fruto do tempo materialista em que se vive.A vilania de Horácio, exibida pelo narrador, é intensificada com a associação dessa personagem a aspectos da cultura clássica, uma vez que está cultura é vista negativamente pela ótica romântica. Horácio tinha seus passos coordenados racionalmente e sabia tirar proveito disso no seu flanar pelos espaços sociais da moda burguesa.

OS PRÍNCIPES ( comparação ) : HORÁCIO x LEOPOLDO


Horácio, com todas as suas características negativas, reforça as características positivas de Leopoldo que é o bom e raro exemplo da conduta moral e emocional na ideologia de Alencar sobre a sociedade fluminense de sua época. É valido adiantar, que admoestação feita por Alencar a costumes e hábitos de segmentos da classe burguesa acaba sendo conciliada com os códigos do espaço capitalista. Veremos mais detalhadamente isso no decorrer desta apostila do Prof. Gil , cabe agora voltar ao assunto que vínhamos abordando.
Leopoldo tem suas ações e pensamentos medidos pela emoção, é extremamente
romantizado pelo narrador. Divergente de Horácio, o bom Leopoldo não se prende ao
corpóreo, à sensualidade materialista, sua busca amorosa é construída por um apego ao
conteúdo espiritual da mulher amada.

Lendo as palavras do narrador, percebe-se o perfil
romantizado de Leopoldo quanto à mulher desejada:

Houve uma ocasião em que o mancebo quis representar em sua lembrança a imagem
da moça; naturalmente começou interrogando sua memória a respeito dos traços
principais. Como era ela? Alta ou baixa, torneada ou esbelta, loura ou morena? Que
cor tinham seus olhos? A nenhuma dessas interrogações satisfez a memória; porque não recebera a impressão particular de cada um dos traços da moça. Não obstante, a aparição
encantadora ressurgia dentro de sua alma; ele a revia como tal se desenhara a seus
olhos algumas horas antes. Era a imagem diáfana de um sonho que tomara vulto de
mulher.

- Não me lembro de seus traços, não posso lembrar-me!... murmurava no íntimo. Eu
a contemplei, como se contempla uma luz brilhante: vê se a chama, o esplendor, e nem se repara no espectro que a flama envolve como uma roupagem. [grifo meu]
Ela é minha; não sei a cor e a forma que tem, mas sei que cintila, que me deslumbra;
que inunda meu ser de uma aurora celeste. Não poderia descrevê-la, como um
poeta... Mas que importa? Pois que eu a sinto em mim; pois que eu a possuo em meu
coração? (p. 22)

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Comentário Importante do Prof. Gil Mattos

A impossibilidade de Leopoldo lembrar-se do aspecto físico da mulher que visualizara é reveladora de seu desapego pelo corpóreo. Nisso, lê-se a tese romântica constante em Alencar do amor espiritual, da rejeição do desejo. Observa-se que em sua tentativa de descrever a graciosa dama que chamou sua atenção, há uma forte associação desta com elementos amorfos e espectrais como a chama e a luz. Indo mais além, como é ressaltado na citação acima , ele afirma que a visualidade da mulher desejada é o “esplendor” e não o “espectro”. O primeiro seria, de acordo com o pensamento de Leopoldo, algo mais interiorizado, psicológico; o segundo, apesar de sua materialidade sem forma, seria algo mais externo e material. A citação acima exibe as palavras do narrador que são corroboradas pelas afirmações da personagem e o discurso de ambos iluminam o perfil psicológico do moço ideal desta narrativa: emocional, solitário, bom de coração, desprendido do materialismo, honesto. Os olhos de Leopoldo viam além da beleza física feminina, buscavam algo abstrato: a beleza interior.
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ATENÇÃO!!!

É valido observar que Leopoldo também apresentou, uma atitude que vai de encontro à sua descrição de homem bondoso feita pelo narrador, mas que mesmo assim a sua imagem não deixa de ser antagônica à imagem da personagem Horácio. Ao vislumbrar o pseudo-aleijão nos pés de Amélia, o bom rapaz se angustia, busca razões para continuar amando a bela moça, tenta formar um discurso que o convença da pouca importância daquele defeito físico. Após esse movimento, de início falho, de interiorização da aceitação do defeito físico, Leopoldo decide não amar a desconhecida e resolve procurar diversão para esquecer sua dor. O bom moço vai então a casa de D. Clementina e lá encontra Amélia. Após sucessivos encontros na residência de D. Clementina, Leopoldo finalmente se convence de que a


deficiência física de Amélia não tem importância diante do seu amor pela jovem.



Para ratificar ainda mais o antagonismo comportamental entre Horácio e Leopoldo, leiamos as palavras do narrador sobre Horácio:

Mas o que sentia Horácio era apenas o culto da forma, o fanatismo do prazer. O amor, o verdadeiro amor consiste na possessão mútua de duas almas; e essa, pode o homem iludir-se alguma vez, mas quando se realiza é indissolúvel. Nada separa duas almas gêmeas que prende o vínculo de sua origem divina. O mancebo admirava na mulher a
formosura unicamente: apenas artista, ele procurava um tipo. Durante dez anos atravessara salões, como uma galeria de estátuas animadas e vivos painéis, parando um instante em face dessas obras-primas da natureza.
Vieram uns após outros todos os tipos: a beleza ardente das regiões tépidas, ou a suave gentileza da rosa dos Alpes; o moreno voluptuoso ou a alvura do jaspe; a fronte soberana e altiva ou o gesto gracioso e meigo; o talhe opulento e garboso ou as formas esbeltas e flexíveis.
Seu gosto foi se apurando; e ao cabo de algum tempo tornou-se difícil. A beleza comum já não o satisfazia; era preciso a obra-prima para excitar-lhe a atenção e comovê-lo.
Mas os sentidos se gastam; os mesmos primores da formosura caíram na monotonia. Já o leão não sentia pela mais bela mulher aqueles entusiasmos ardentes da primeira mocidade. Seu olhar era frio e severo como de um crítico. (p. 19)

DEPOIS DOS PRÍNCIPES , VAMOS CONHECER AS CINDERELAS

Amélia e Laura.

As duas gatas borralheiras da obra de Alencar pertencem a um estrato social opulento, a uma classe social economicamente favorecida. Podem ser associadas à personagem da história infantil devido ao mistério que envolve seus pés. Se, na apresentação dos cavalheiros, o narrador os desnuda, principalmente, pela exposição de seus discursos, o mesmo não acontece com as moças da história. As belas damas descritas têm sua beleza física e sua classe social expostas pelas palavras do narrador, mas a personalidade de ambas é revelada pelas suas ações. Amélia e Laura revelam-se por seus atos, esta com menos ações e espaço dentro da narrativa e aquela com mais ações e espaço revelando, portanto, bem mais. Desse modo, o narrador deixa um espaço maior para a participação do leitor no desnudamento das personagens femininas. Como já foi dito anteriormente, Amélia e Laura opõem-se parcialmente

na narrativa. Primeiramente, a disposição das duas personagens no espaço da história é diferente. Amélia é, ou melhor, os seus pés são o sonho de consumo de Horácio, enquanto o espírito da moça é o motivo da ânsia de Leopoldo por uma essência divina e bela.



Laura, apesar de ter pouco espaço na narrativa, é um dos componentes do mistério que atravessa todo o romance: quem é a desconhecida proprietária dos pezinhos formosos sonhados por Horácio de Almeida?
Logo no início da narrativa, as duas moças já são apresentadas juntamente com a classe social a que pertencem:

Estava parada na rua da Quitanda, próximo à da assembléia, uma linda vitória, puxada por soberbos cavalos do Cabo.


Dentro do carro havia duas moças: uma delas, alta e esbelta, tinha uma presença encantadora; a outra, de pequena estatura, muito delicada de talhe, era talvez mais linda que sua companheira. Estavam elegantemente vestidas, e conversavam a respeito das compras que já tinham realizado ou das que ainda pretendiam fazer.
- Daqui aonde vamos? perguntou a mais baixa, vestida de roxo claro.
- Ao escritório de papai: talvez ele queira vir conosco. Na volta passaremos pela Rua
do Ouvidor, respondeu a mais esbelta, cujo talhe era desenhado por um roupão
cinzento.
(...)
Depois de alguns momentos de espera, sobressaltou-se o roupão cinzento, e
conchegando-se mais às almofadas, como para ocultar-se no fundo da carruagem,
murmurou:
- Laura!... Laura!...
E como sua amiga não a ouvisse, puxou-lhe pela manga.
- O que é, Amélia?
- Não vês? Aquele moço que está ali defronte nos olhando.
- Que tem isso? disse Laura sorrindo.
- Não gosto! replicou Amélia com um movimento de contrariedade. Há quanto tempo está ali e sem tirar os olhos de mim?
(...)
Avisado o cocheiro, avançou alguns passos, de modo a tirar ao curioso a vista do interior do carro; mas o mancebo não desanimou por isso, e passando de uma a outra porta, tomou posição conveniente para contemplar a moça com admiração franca e apaixonada.
Simples no traje, e pouco favorecido a respeito de beleza; os dotes naturais que excitavam nesse moço alguma atenção eram uma vasta fronte meditativa e os grandes olhos pardos, cheios do brilho profundo e fosforescente que naquele
momento derramavam pelo semblante de Amélia. (p. 11-12)
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Comentário Importante!!

Nessa apresentação das moças, trajes e manequins se confundem, mas logo é possível perceber a relação das donas com os seus respectivos trajes: Amélia veste o roupão cinzento e Laura traja um vestido roxo. O cenário com uma vitória com soberbos cavalos do Cabo, trajes elegantes, lista de compras e cocheiros e lacaios a serviço das moças é, nitidamente, revelador da classe social das mesmas. O narrador expõe a classe social e a beleza das duas moças, detalhes importantes na visão de Horácio. Porém, antes de Horácio ver rapidamente as cinderelas na vitória e ter o intuito de devolver o sapatinho de cristal para a senhorita da alta sociedade, já aparece a figura de Leopoldo com seus aspectos notadamente opostos aos do“leão”: contemplativo, pouco favorecido a respeito da beleza física, com o vestuário simples e, principalmente, contemplando a moça com “admiração franca e apaixonada”.
A oposição ostensiva entre Horácio e Leopoldo: classe social, beleza física e comportamento, não acontece entre Amélia e Laura. Além da deformação física, ainda que assimétrica, dos pés: Laura com os pés enormes e Amélia com os pés pequenos, as duas são belas, pertencem à mesma classe social e apresentam semelhança na beleza física. As atitudes de Laura e de Amélia e as descrições do narrador sobre as mesmas, que demonstrariam as diferenças de comportamento, não estabelecem diferenças significativas entre as duas devido à estrutura da narração, ao espaço que as mesmas ocupam na história. Enquanto Amélia fica sob o foco de luz durante quase todo o desenrolar da narrativa, Laura ocupa um espaço menor, ela simplesmente é a personagem auxiliar na manutenção do mistério que impulsiona a história. Logicamente, sendo o espaço de Amélia maior na trama, entrever-se-ão mais atributos da personalidade dela do que de sua amiga Laura.
A moça Amélia  dos pés pequenos tem sua atenção inicialmente despertada para a beleza visual de Horácio. A princípio, Amélia não se interessa por Leopoldo, é incapaz de ver através do bom moço, de ser atraída por seu olhar de “brilho profundo e fosforescente”. Logo no início da narrativa, Amélia se sente incomodada com o olhar de Leopoldo, procura fugir de
sua visão pedindo ao cocheiro que ande mais um pouco com a vitória para que não fique exposta aos olhos do mancebo. O mesmo acontece no teatro, onde Amélia se esconde atrás da amiga Laura para evitar que Leopoldo a toque com os olhos. Nessas duas situações, a Cinderela oculta-se pudicamente de Leopoldo, no entanto, na segunda situação ocorrida no Teatro Lírico, vendo a figura esteticamente atrativa de Horácio, a personagem feminina se expõe sensualmente às lentes do binóculo de marfim do príncipe da moda:

Estava a subir o pano.
Amélia resolvera ficar onde estava, e tomar o lugar da frente, apesar de Laura ter
voltado a seu camarote. Mas essa resolução, tão solidamente calcada em seu
coração, caiu de repente: bastou um olhar. Vira na platéia, encostado à balaustrada
da orquestra, um elegante cavalheiro.
Era Horácio.
O sorriso brando que manava dos lábios da moça, como a onda pura e cristalina de
um ribeiro, desapareceu então sob outro sorriso mais brilhante, que borbulhava
como a frol da cascata. Era o sorriso da vaidade, como outro era da inocência. [grifo
meu] A moça colocou-se na frente, fazendo realçar com a graça de seus movimentos a
suprema elegância do talhe. Demorou-se mais do que era preciso nesse ato; e
sentando-se, houve em seu corpo um impulso quase que imperceptível de misteriosa
expansão. Dir-se-ia que ela se queria debuxar no quadro iluminado do camarote.
A causa desse elance não o adivinham? O leão tinha assestado seu binóculo de
marfim; e a moça com um irrestível assomo de faceirice abandonava-se ao olhar do
mancebo. (p. 24 – 25)

Amélia é, portanto, também ligada, pelo menos inicialmente, à beleza visual. Não vê com bons olhos o moço Leopoldo, uma vez que esse não traz a beleza física e a elegância social de Horácio; busca o luxo, a beleza, a elegância, a moda, aspectos esses significativos em sua classe social. O pensamento do narrador, destacado na citação acima, revela a
personalidade de Amélia permeada de inocência e de vaidade. Vale lembrar que a moça Amélia segue, sem muitas inquietações, a sua estrada em direção ao casamento com Horácio, enxergando bem mais tarde a bondade de Leopoldo e a vacuidade (vazio )  do “leão

A ASTÚCIA DA GAZELA

A astúcia da gazela pode ser percebida em suas variadas ações dentro da narrativa. Peguemos como exemplo o momento em que Horácio começa a freqüentar a casa do pai de Amélia. A moça para se certificar de que o rapaz realmente está interessado nela e não na amiga, provoca o “leão”. Reclamando da ausência de Laura. Horácio diz então o que ela quer ouvir, afirma que a ausência é uma gentileza que Laura faz a ele, pois assim, sem a amiga, Amélia poderia dar atenção a ele. Além desse ato de esperteza, Amélia toma várias outras atitudes reveladoras de sua sagacidade. Assim que Amélia recebe a notícia de que Horácio havia pedido sua mão em casamento, a mesma age sutilmente conquistando a anuência do pai e propondo a ele que demore a dar resposta ao pretendente com a finalidade de valorizar a si mesma. Como vemos, a gazela apresentava um grande tino para negócios, chegando a ensinar ao pai, um grande negociante, a atitude correta a tomar na transação matrimonial. Estava impregnada na personagem Amélia a cultura comercial da sociedade a qual ela pertencia. A própria moça nessa atitude ratifica o caráter de mercadoria impingido à mulher numa transação do comércio matrimonial, que se dava entre homens.
As personagens Horácio e o Sr. Pereira Sales apresentam discursos que merecem um desdobramento. No início do envolvimento formal entre a “gazela” e o “leão”, Horácio, antes de enviar uma carta ao pai de Amélia pedindo a mão da moça, alegra-se ao saber das posses da família: “- Bem! O meu pezinho tem um dote para o seu calçado. Pode andar com luxo” (p.38).
Está patente a importância da posição econômica de Amélia para o belo rapaz. O Sr. Pereira Sales, ao receber a carta do pretendente de sua filha, preocupa-se, conversa com a esposa e depois com a filha. O que se depreende desses movimentos das personagens? Quando dialoga com a filha, o pai faz as seguintes observações sobre Horácio: “É um excelente moço; tem alguma coisa de seu; mas anda em certa roda que não me agrada”(p. 56) A roda de moços da moda não agrada ao chefe da família. Por quê? Horácio “tem alguma coisa de seu”, está inserido na roda da burguesia, mas mesmo assim há a preocupação de Pereira Sales. Como já foi observado, o pretendente da mão ou dos pezinhos de Amélia vivia no movimento da moda, não se dedicava ao trabalho com o capital e isso é algo que fere a organização da sociedade burguesa. A objeção do bem estabelecido consignatário de café em relação a Horácio revela a preocupação burguesa em manter uma estrutura social. Em outras palavras, não basta ter capital, é preciso saber cuidar dele.
O cavalheiro elegante operava com a beleza visual, era um consumidor, mas não era um produtor. Pode-se até pensar em Horácio, também, como um produto de consumo. Um produto que depende da bela imagem para ser consumido na sociedade do espetáculo. A boa família burguesa de Amélia,


representada por seu patriarca, preocupa-se com a perpetuação e multiplicação de seu capital, por isso a inserção do mancebo na estrutura familiar burguesa do Sr.
Pereira Sales, tendo em vista o código capitalista, causava desconforto.

 A RELAÇÃO AMÉLIA & HORÁCIO

Amélia compreendia que homenagem eloqüente à sua beleza havia naquela adoração do elegante cavalheiro; sentia-se orgulhosa com esse amor, que tantas mulheres lhe invejavam; considerava-se rainha, desde que via a seus pés subjugado e humilde o rei da moda. (ALENCAR, 2002, p. 50)

A moça, no seu relacionamento com o “leão”, deseja não somente dominá-lo, mas tê-lo completamente subjugado. Amélia mostra-se vaidosa e arrogante ao receber a notícia do criado de que Horácio riu ao ler a carta que determinava o prazo de resposta ao pedido de casamento do leão:

No dia seguinte, Amélia perguntou ao criado se a carta fora entregue a Horácio


- Entreguei em mão quando entrava no tílburi.
- E que disse ele?
- Nada; leu-se e riu-se.
- Ah! ele riu-se, murmurou Amélia consigo. Pois eu lhe mostrarei.
Desde então, empenhada sua vaidade, os susto se desvaneceram. Estava decidida a não ceder. Horácio depois de vencido tentava ainda resistir-lhe? Pois havia desubjugá-lo completamente. (p. 59)
Amélia em seus embates com o “leão”, usa também a indiferença calculada como faz no teatro ao ignorar ao máximo o rei da moda.

Teria Amélia simulado aquele gesto de propósito? É natural; ela queria subjugar outra vez o cativo que escapara; usava de todos os seus recursos.
Durante o resto da noite, a moça mostrou-se a mesma calculada indiferença, a ponto de irritar o mancebo. (p. 62)

NEM TÃO INGÊNUA ASSIM...

Essas e várias outras atitudes da moça Amélia revelam facetas pouco nobres do seu caráter da heroína do romance, considerando o idealismo romântico na construção das personagens femininas. A moça de boa família, pura e bela não deve ser vista como um ser idealizado, um anjo inocente. Amélia é uma mulher sagaz e, na dança citadina do século XIX reduzida no romance, soube movimentar-se para atingir seus objetivos. Lembremos ainda duas ações da moça que a afastam do modelo de mulher ingênua e angelical: a sua empresa em relação a atenção de Horácio e suas idas à casa de D. Clementina. A primeira ação mostra a pouca preocupação de Amélia com a amiga Laura. A moça investe em Horácio mesmo sabendo que o rapaz estava interessado em Laura chegando, planejadamente, a provocar um assunto sobre a amiga para certificar-se do não-interesse do leão pela mesma.
A casa de D. Clementina, lugar alegre e popular, era freqüentada pela moça que também mantinha contato com Leopoldo. Amélia não se privava de dialogar com Leopoldo,


de dançar com o bom moço, mesmo já tendo Horácio se aproximado dela e de já estar iminente um envolvimento entre os dois. Amélia chega a se magoar, pois não

entendendo as intenções do discurso do moço sobre o aleijão, pensa ter sido considerada feia por ele.
Conclui-se que, embora já com Horácio freqüentando sua casa, a donzela não recusa galanteios do outro rapaz. Ainda sobre a casa de D. Clementina, é valido observar a proibição  que Amélia faz a Horácio. A moça não quer a presença do rapaz frajola na casa de Clementina e de Campos. Ela justifica mentirosamente essa medida; diz, na segunda justificativa, que o ambiente iria irritar o leão por ele estar acostumado com a alta roda e, na primeira justificativa, o aparecimento dele por lá poderia chamar a atenção e ser motivo de um suposto romance entre os dois, criado por algum convidado dado a falatórios. Ao ser questionada pelo rapaz por que ela continuaria indo a um ambiente desses, ela diz ser uma obrigação social. O narrador, ao expor o pensamento de Amélia sobre tal situação, revela a inverdade em suas palavras: Amélia buscava a casa de D. Clementina como um refúgio do rebuliço citadino que Horácio carregava consigo e proibia seu pretendente de freqüentar aquele
espaço por temer estar diante dos dois rapazes contrastantes. Ela temia o que poderia
advir com isso.
Aquela casa servia-lhe de abrigo contra a sedução que exercia em seu espírito a elegância de Horácio. Quando sentia-se vencida, fugia para ali, onde recobrava forças para resistir de domar completamente o leão, soberbo de suas conquistas.
Era essa uma das razões; a outra era o receio de achar-se em face dos dois moços, repartida entre a sedução de um e a fascinação do outro. Pressentia que esse conflito, resultaria alguma coisa, que ela não podia definir, mas que a enchia de sustos e inquietações.
Por isso exigiu de Horácio que não fosse à casa de D. Clementina:

- Costumam lá ir algumas dessas pessoas que se ocupam em inventar novidades. Sua
apresentação, Sr. Horácio, daria pretexto a algum romance.
- Mas por que ainda freqüenta semelhante casa?
- Pedidos... bem sabe; nem sempre uma pessoa se pode recusar. Mas se o senhor
aparecer lá, eu deixarei de ir. (2002, p. 47)

Ainda sobre o caráter da heroína, é importante observar essa passagem, ocorrida na casa de D. Clementina:
Pelo meio da noite, Leopoldo aproximou-se de Amélia para lhe pedir uma contradança. Tinham dançado a primeira marca sem trocar palavra; afinal o mancebo rompeu o silêncio.


- É verdade que foi pedida em casamento?
Amélia empalideceu; quis disfarçar iludindo a pergunta, mas encontrou o olhar de
Leopoldo, olhar tão doce e sincero, que não se animou a enganá-lo. (ALENCAR,2002, p. 59)


Ora, se a moça recebe de surpresa a pergunta de Leopoldo e não se anima a enganá-lo, fica patente que ela poderia usar ou usava de dissimulação em suas relações. Sua amiga Laura aparece pouco e suas atitudes são recatadas. Nessas poucas vezes que aparece mostra-se diferente de Amélia. A jovem viúva não se deixa seduzir pela imagem de Horácio e, silenciosamente, afasta-se dele. Laura é uma personagem que age pouco e fala menos ainda. Como já foi exposto anteriormente, a jovem Laura é uma peça do mistério, do enigma da história que somente no final da narrativa vai ser revelado. Nas poucas vezes que aparece, mostra-se mais discreta que Amélia e mais resistente ao “leão”.




AMÉLIA E OS PRÍNCIPES – UMA MUDANÇA DE ATITUDE


Retornado à sagaz gazela – a moça Amélia, vemos ao final da história as estruturas de sua teia expostas. Após ouvir, escondida, o diálogo contrastante entre Leopoldo e Horácio, a moça passa a ver melhor as garras do “leão” e a ternura do cordeiro. Nesse diálogo, o pensamento de Horácio e o de Leopoldo se confrontam, este revela seu desejo pelo lado espiritual da mulher amada e aquele toda a sua paixão pela estética dos pezinhos. Os dois rapazes se revelam através de seus respectivos discursos. Ao tomar ciência disso, Amélia movimenta-se com destreza no intuito de esmagar triunfante o “leão”.
Logo após ouvir o diálogo entre Leopoldo e Horácio, a gazela arquiteta com destreza o plano que dá novo rumo à história. Amélia começa convidando Horácio para o jantar em sua casa no dia seguinte. Esse, de início, recusa, mas acaba por aceitar o convite da moça. No dia seguinte, quando o mancebo chega à casa da moça, ele a encontra entretida em um trabalho manual com pequenas sandálias. No esboço das pequenas sandálias, percebe Horácio a letra “L”. Conversa ele com Amélia sobre as pequenas sandálias, diz ter pensado ser somente ela, Amélia, a dona de tão delicados pés. Amélia continua seu trabalho e deixando exposto o pé falsamente aleijado, faz com que o rapaz o veja. O “leão” fica atordoado, sai, mas recupera o sangue-frio e retorna a casa de Sales Pereira ainda jantando com a família.
O plano de Amélia dá certo e a moça continua sua ação. Além de comprovar o falso amor de Horácio por ela, enganando-o com o pé falso, ela dá o motivo para que ele desfaça os laços do noivado. A jovem não aceita a limitação que Horácio lhe “impõe”: deixar de freqüentar a casa de D. Clementina.
Contudo, a gazela não se dá por satisfeita e tem sua ação final contra o “leão” ao exibir propositalmente seus pequenos pés ao rei da moda. É o “leão” esmagado pela pata da gazela.
Como se pode perceber, Amélia demonstra com seus atos, no decorrer da história, toda a sua perspicácia. Ela caça o “leão”, prende-o e desfaz-se dele quando consegue, por entre a rede de diálogos que percorreu, ver além da sua imagem. Ainda, como se não bastasse, exibe o símbolo de sua vitória: seus pequenos pés. Assim, deixa ela claro para Horácio que ele foi derrotado. Como em várias estórias, o mais fraco vencendo o mais forte. É muito evidente a sua intenção em punir Horácio. A moça, com o pretexto de comprar luvas, pára a carruagem e caminha até a loja em que iria realizar sua compra. Na volta da loja, aproveita a oportunidade
e executa seu objetivo:

- Para que mandaste parar? Perguntou D. Leonor?
- Quero comprar luvas de Masset, responde a filha.
- Ficou para trás.
- Podemos ir a pé.
(...)
As duas senhoras dirigiram-se para a casa do Masset. Horácio procurou cortejá-las na passagem, mas elas não lhe deram ocasião. Contudo o leão reparou que a moça disfarçadamente voltou o rosto para olhá-lo. (ALENCAR, 2002, p. 87) Então, no momento exato, Amélia completa seu plano:
Amélia percebeu a insistência do olhar, e um ligeiro sorriso fugiu-lhe dos lábios. Imaginando que na calçada havia tanta lama, colheu ambas as mãos a frente da saia, e com tanto estouvamento que descobriu os pés até o colo da perna.
Horácio ficou fulminado. Vira pousados na calçada dois pezinhos mimosos que palpitavam dentro de botinas
de merino cor de cinza. (ALENCAR, 2002, p. 88)

O DISCURSO DE LEOPOLDO

Falava-se a respeito de uma senhora casada, a quem o marido causava sérios desgostos. Pessoa que sabia das particularidades dessa família explicava o fato à sua maneira.

- Ela era muito linda, o marido a adorava; casou-se por paixão. Poucos dias depois de casada, teve ela uma grave moléstia que a reduziu àquele estado. Não há paixão que resista!
- Com efeito, sabe ser feia!
- Ninguém acreditará que foi bonita.
- Pois foi uma beleza.
Leopoldo que ouvia calado interveio:
- O marido nunca a amou!
- Asseguro-lhe que teve uma paixão louca.
- E eu afirmo-lhe que não; que ele nunca teve paixão pela mulher. O que ele adorava era unicamente a sua beleza, a forma; isto é um acidente. O homem que ama a mulher destinada a ser companheira de sua existência, o complemento de seu ser imperfeito, não despreza essa mulher, porque a desgraça a feriu no invólucro material de sua alma. Ele pode sofrer com aquela desgraça; mas deve redobrar de amor e adoração, para que nem seus olhos vejam o defeito, nem ela, a mulher amada, se lembre nunca de que o tem para ele, embora o tenha bem claro para o indiferentes.
- É bonito de dizer! Acudiu um apreciador das mulheres formosas.
- Todos dizem o mesmo, mas fogem das feias, observou uma senhora idosa, talvez por experiência própria.
- O que digo, minha senhora, já experimentei em mim mesmo, replicou Leopoldo.
- Ah! O mancebo cravou em Amélia um olhar eloqüente e disse com a palavra lenta e calma:
- É verdade; já o experimentei em mim. Por que hei de ocultá-lo? Minha alma já passou por esta dura prova, e saiu triunfante. Hoje sei que tenho forças para amar até os defeitos da mulher que Deus me destinou.
Amélia perturbou-se com aquelas palavras, e o olhar ardente que parecia gravá-las em sua alma. Nessa noite retirou-se pensativa; e por muito tempo a figura pálida de Leopoldo esvoaçou na penumbra de seu leito de virgem.  (p. 48)



Leopoldo, através dessa situação, lança mais uma semente de seu discurso no pensamento de Amélia e, assim, seu discurso vai se enraizando no pensamento da moça.

Mais tarde em sua alcova, enquanto desfazia o penteado, soltando os lindos anéis do cabelo castanho, Amélia recordou-se das palavras apaixonadas que ouvira de Leopoldo na véspera, e comparou-as com a queixas de Horácio. A linguagem do primeiro tinha a eloqüência da paixão; parecia vir do íntimo, do mais profundo coração. A linguagem do segundo tinha a graça da sedução: era a vibração passageira das cordas d`alma. Mas a palavra do



leão vinha envolta em um sorriso gracioso, sombreado por um bigode fino e elegante! (p. 51)

Esse entrelaçamento de discursos vai se construindo no pensamento de Amélia e tem sua definição quando ela ouve, escondida, o diálogo ao vivo entre Horácio e Leopoldo. Antes o que era uma certa confusão de idéias bailando na mente
da jovem, após o diálogo dos dois rapazes, passa a constituir o pensamento decisivo da mesma conduzindo-a para concretudes externas ao plano de suas idéias. Amélia, a essa altura, já vê nitidamente a situação em que se encontra, já tem uma opinião sólida sobre seus dois pretendentes e começa a agir para atingir seu objetivo. Daí em diante, a moça usa toda a sua argúcia e esmaga o “leão”, terminando a história com o bom moço Leopoldo, que recebe Amélia e sua riqueza financeira como recompensa por sua bondade.

CONCLUSÃO


A narrativa é simples e apresenta estrutura semelhante à estrutura das histórias oriundas da literatura oral: apresentação das personagens, do ambiente, surgimento de um problema e fechamento com a vitória e recompensa do herói possuidor de alma nobre e bondosa. Embora a narrativa seja simples, não se pode exagerar e condená-la ao estigma de uma narrativa extremamente superficial no que se refere à construção das personagens do romance Senhora, mas situar Amélia no patamar das moças ficcionais sem claro-escuro, rotular a história como uma simples história de mocinha que conhece o primeiro amor, seria uma análise demasiadamente uniformizante e deformadora. Amélia, como foi visto no
decorrer deste trabalho, é uma personagem que se destaca pela conduta e por traços psicológicos interessantes. Além de Amélia, Horácio é uma personagem que sintetiza os traços
do segmento social a que pertence e traços de uma individualidade exótica.

INTERTEXTUALIDADE


Retornando à construção da obra, vemos que Alencar estabelece uma intertextualidade entre esta obra e duas histórias de origem popular oral: o conto de fadas Cinderela , também conhecido como A gata borralheira e a fábula do Leão amoroso, esta última sendo mencionada no final da narrativa. Heron de Alencar, na obra A literatura no Brasil dirigida por Afrânio Coutinho, observa a influência da literatura oral no romance romântico brasileiro.
É sabido que o momento em que Alencar produziu suas obras é um momento romântico e, portanto, possui laços com a cultura popular, com a oralidade; são, pois, as fábulas e os contos de fadas oriundos desse tipo literatura que está presente na vertente popularesca do Romantismo. Até mesmo os mistérios que costumam estar presentes nos contos de fadas possuem um representante nessa obra do escritor brasileiro: lembram o temário satânico do Romantismo, algo também popular. Deixam-nos esses pés evocar A dama pé de cabra de Alexandre Herculano. Claro está que as personagens de Alencar não se situam nem em um espaço, nem em um tempo desconhecidos e, muito menos, estão envolvidos em uma atmosfera feérica. O tempo é o século XIX e o espaço é a sociedade fluminense. As relações românticas das personagens ali na obra estão em uma rede social entrelaçada com os fios do poder do capital. Há na obra, como em toda obra citadina de Alencar, luzes sobre o segmento social dominante, sobre seus costumes e espaços freqüentados e uma penumbra, ou melhor, sombra sobre os outros segmentos: escravos, brancos sem posse, artífices. Ponto esse revelador do inexistente prestígio desses


últimos segmentos nas relações sociais determinadas pela classe dominante. Lembremos o pensamento de Horácio em relação aos sapateiros; passava a ter consideração por eles, em substituição ao anterior repúdio, somente porque os mesmos poderiam ajudá-lo a atingir seu objetivo. Os segmentos sociais desvalorizados só aparecem quando estão
relacionados com os passos das personagens constituintes da faixa social dominante.
O final da história traz um casamento um tanto discordante das formalidades sociais. Amélia se recusa a tornar público o seu enlace com Leopoldo, o narrador justifica pelapersonagem essa atitude: a moça não queria expor ao seu meio social o título de noiva pela segunda vez. São instigantes, suscitadoras da imaginação as palavras do narrador alencarino ao tratar do fechamento do destino das duas personagens:


Leopoldo começou a freqüentar a casa de Sales poucos dias depois da partida de D. Clementina. As duas almas, por tanto tempo separadas, só esperavam o momento de se unirem ou antes de se entranharem uma na outra. Às tardes no jardim, entre cortinas de flores, elas celebravam esse místico himeneu do amor, único, eterno e
indissolúvel, porque se faz no seio do Criador. Pelo voto de todos se apressou o dia do casamento, que os noivos exigiram se fizesse inteiramente à capucha, e sem prévia participação. A razão desse empenho, só Amélia sabia e nunca a disse. Era um escrúpulo de seu pudor: depois do que tinha acontecido, não queria que lhe dessem outra vez o título de noiva. (p.95)


Estaria aí, muito escondido, o ato sexual antes do casamento? A união matrimonial às escondidas e às pressas, a justificativa dúbia (ver grifo na citação), o vocabulário  discretamente erótico. Tendo em mente uma época e uma sociedade conservadoras, com fortes restrições ao ato sexual, a internalização em uma narrativa de um acontecimento desses em uma época dessas
só poderia vir mencionada dubiamente numa obra de circulação significativa como essa em estudo. O “depois do que tinha acontecido” deixa uma dubiedade: o que teria acontecido antes? O rompimento do noivado por Horácio deixando Amélia exposta a uma situação desagradável perante a sociedade ou algo mais audacioso para a época? É
um ponto da narrativa que merece um ponto de interrogação. Embora Leopoldo reunisse os requisitos morais burgueses preservadores da organização social, ele não era detentor do capital como o “Leão”. Logo, o rapaz de moral nobre encontrava-se em uma situação parecida com a de Horácio. Este com capital, elegância e despreocupação em conservar e multiplicar o fio metal, aquele sem capital, sem elegância e detentor de requisitos morais burgueses. Seria o noivo ideal aceito pela família burguesa de Amélia? Talvez uma situação mais constrangedora na esfera moral da burguesia viesse a obrigar a família a abraçar o rapaz. São suposições tendo em vista o contexto social que é recriado no romance. Considerando o cuidado que autor devia ter para não ferir os códigos da estrutura burguesa, a situação de Amélia e Leopoldo, às vésperas do casamento, apresentada tão dubiamente pelo narrador é algo que instiga a imaginar essa situação.  As personagens e suas individualidades mantêm um colóquio dialético com seus nichos sociais e o destino destas, as relações sociais e amorosas que experimentam, a rotina em que se encontram, entre outras situações, trazem determinações de um plano externo. A ascensão do moço pobre, por exemplo, o casamento desse com a moça rica é um indício claro de que o destino de muitas personagens segue as curvaturas do pensamento social, do ideal de felicidade em uma sociedade movimentada pelo dinheiro. Leopoldo não é rico, o rapaz tem uma vida modesta, no entanto, circula nos espaços da alta roda fluminense. O bom moço ingressa em um segmento social elevado através do casamento com a moça rica e, antes disso, apresenta sinais de adaptação ao seu futuro estrato social. Detenhamo-nos, como exemplo disso, no comportamento de Leopoldo ao ter em suas mãos o ingresso comprado para a vida na alta roda. O mancebo passa a ser cuidadoso com sua aparência e a bondade do narrador atribui esse comportamento à mulher amada. Seria mais realista dizer à mulher rica e amada.



Leiamos a passagem:


Tinha chegado à esquina, quando passou defronte um moço, que seguiu pela calçada Carceler. Horácio acompanhou-o com a vista, querendo nele reconhecer seu amigo Leopoldo que havia cerca de um mês não vira.Se com efeito o moço era Leopoldo, tinha ele sofrido grande transformação. Em vez do rapaz descuidado no seu traje, brusco com suas maneiras, sempre de cabelos        arrepiados e barba revolta,aparecia um cavalheiro de boa presença, com sóbria elegância que tão bem assenta nos homens sisudos. Essa espécie de elegância é apenas um ligeiro perfume, e não uma incrustração com a que usam os moços da moda.Com seu fino tato e longa experiência, Horácio, reconhecendo o amigo, adivinhou o segredo daquela súbita metamorfose. Ele sabia que só há um condão capaz de produzir tais encantos: o olhar da mulher amada e amante. (ALENCAR, 2002, p. 93)



Antes, o rapaz desajeitado, feio, deselegante, mal trajado, depois, ao ingressar no estrato social detentor do dinheiro, o rapaz elegante, belo, bem trajado. Toda essa metamorfose causada pelos olhos da mulher amada, ou melhor dizendo, devido à riqueza financeira da mulher amada, devido ao contexto social em que Amélia está inserida. O que transforma o sapo em príncipe não é um beijo da princesa, nem mesmo um objeto mágico.



( Organizador do Material : Prof. Gil Mattos )   



Fonte:
ALENCAR, Heron de. José de Alencar e a ficção romântica. In: A literatura no Brasil.
Direção Afrânio Coutinho, co-direção Eduardo de Faria Coutinho. 4.ed. Revista e atualizada,
vol. III. São Paulo: Global, 1997.
CANDIDO, Antonio. Os três alencares. In: ______. Formação da literatura brasileira:
momentos decisivos. 6.ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000 (2v. Coleção Reconquista doBrasi

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