Publicado em 1904,
Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis.
O título é extraído
da Bíblia e remetendo-nos ao Gênesis: à história de Rebeca, que privilegia o
filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, fazendo-os inimigos
irreconciliáveis. A inimizade dos gêmeos Pedro e Paulo, do romance de Machado,
não tem causa explícita, daí a denominação de romance "Ab Ovo" (desde
o ovo).
É o romance da
ambigüidade, narrado em 3ª pessoa, pelo Conselheiro Aires. Pedro e Paulo seriam
"os dois lados da verdade". Filhos gêmeos de Natividade e Agostinho
Santos, à medida que vão crescendo, os irmãos começam a definir seus
temperamentos diversos: são rivais em tudo.
Paulo é impulsivo,
arrebatado, Pedro é dissimulado e conservador - o que vem a ser motivo de
brigas entre os dois. Já adultos, a causa principal de suas divergências passa
a ser de ordem política - Paulo é republicano e Pedro, monarquista. Estamos em
plena época da Proclamação da República, quando decorre a ação do romance.
Para apaziguar a
discórdia fraterna, de nada valem os conselhos de Aires, amigo de Natividade,
nem as previsões de discórdia e grandeza feitas por uma adivinha (A Cabocla do
Castelo), quando os gêmeos tinham ainda um ano.
Até em seus amores,
os gêmeos são competitivos. Flora, a moça de quem ambos gostam, se entretém com
um e outro, sem se decidir por nenhum dos dois. Além disso, a moça é retraída,
modesta, e seu temperamento avesso a festas e alegrias, levou o Conselheiro
Aires a dizer que ela era "inexplicável".
O conselheiro Aires é
mais uma grande personagem da galeria machadiana, que reaparecerá como
memorialista no próximo e último romance do autor: velho diplomata aposentado,
de hábitos discretos e gosto requintado, amante de citações eruditas, muitas
vezes interpreta o pensamento do próprio romancista.
As divergências entre
os irmãos continuam, muito embora, com a morte de Flora, tenham jurado junto a
seu túmulo uma reconciliação perpétua. A morte da moça, porém, une
temporariamente os gêmeos, mais tarde, também a morte de Natividade cria uma
trégua entre ambos, mas logo se lançam às disputas.
Continuam a se
desentender, agora em plena tribuna, depois que ambos se elegeram deputados por
dois partidos diferentes. Absolutamente irreconciliáveis, cumpre-se, portanto,
a previsão da adivinha: ambos seriam grandes, mas inimigos.
O ESTILO DE ÉPOCA
Cronologicamente,
Esaú e Jacó é um livro que surgiu nos fins do Realismo (1904), estando fora da
fase áurea do Realismo brasileiro e da ficção machadiana (1880-1900). Isso quer
dizer que se torna difícil enquadrar o romance nos moldes realistas, como quer
a crítica, ao situá-lo na segunda fase de Machado de Assis. Talvez mais correto
seria localizá-lo numa terceira fase... Além do mais, por essa época (1893),
surgia um novo estilo - o Simbolismo, que, apesar de ser um movimento
essencialmente poético, vai manifestar-se no livro de Machado de Assis.
Não obstante, alguns
aspectos do Realismo podem ser detectados:
1) Fidelidade na
descrição de situações e personagens. A verdade dos fatos é uma das
principais preocupações realistas. Ser fiel àquilo que descreve é uma norma que
o escritor realista, tanto quanto possível, procura seguir. Ao se comparar o
escritor realista com o romântico, vê-se que este se caracteriza pela fantasia,
pela imaginação, pelo idealismo. O escritor realista é, mais ou menos, o
oposto: encara a realidade direta e objetivamente e procura mostrar o que é,
não o que deve ser, como os românticos.
Em diversas
passagens, Machado se preocupa com a verdade dos fatos, em ser fiel àquilo que
narra, como é o caso desta passagem do Cap.
V:
“Não me peças a causa
de tanto encolhimento no anúncio e na missa, e tanta publicidade na carruagem,
lacaio e libré. Há contradições explicáveis. Um bom autor, que inventasse a sua
história,
ou prezasse a lógica
aparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça
ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as causas se passaram, e refiro-as
tais quais. Quando muito, explico-as, com a condição de que tal costume não
pegue”.
Quanto à
autenticidade das personagens, é difícil perceber no livro, com exceção do
Conselheiro Aires, que acaba “ocupando o centro de toda a narrativa”, como
ressalta Massaud Moisés. Outras personagens, como Pedro, Paulo e Flora, lembram
figuras românticas. Flora, por exemplo “é moça, virgem, e morre de doença
estranha, mal de sentimento ou coisa parecida” (Massaud Moisés).
2) Gosto pela
análise. A análise é uma característica básica na ficção realista,
principalmente a análise psicológica.
Esaú e Jacó, atém-se
à análise da complexidade dual do ser humano. Em inúmeras passagens encontra-se
essa preocupação de analisar, onde Machado procura desvendar e esclarecer os
segredos da alma humana, como é o caso do excerto abaixo, extraído do Cap.
XCIII:
“Talvez a causa
daquelas síncopes da conversação fosse a viagem que o espírito da moça fazia à
casa da gente Santos. Uma das vezes, o espírito voltou para dizer estas
palavras ao coração:
“Quem és tu, que não atas nem desatas? Melhor é que os deixes de vez. Não será
difícil
a ação, porque a
lembrança de um acabará por destruir a de outro, e ambas se irão perder com o
vento, que arrasta as folhas velhas e novas, além das partículas de cousas,
tão leves e pequenas,
que escapam ao olho humano.
Anda, esquece-os: se
os não podes esquecer, faze por não os ver mais; o tempo e a distância farão o
resto”.
3) Objetividade a
impessoalidade. Não resta dúvida que essa é uma característica que reflete
a época do cientificismo, da precisão, da observação. Ao contrário do
Romantismo, no Realismo o escritor não interfere na conduta de suas
personagens; tanto quanto possível, ele se afasta delas, desenvolvendo assim
uma narrativa objetiva e impessoal.
No romance em
questão, é fácil perceber essa característica, embora o Conselheiro Aires tenha
muito de Machado de Assis: é um homem cordato, grave, ponderado, equilibrado,
inteligente como o próprio escritor. Mas o livro em si retrata uma situação que
é vista e narrada por um observador que procura ser objetivo e impessoal, como
se revela na passagem abaixo, do Cap. XLVIII:
“Ao cabo, não estou
contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das
pessoas que entram no livro. Estas é que preciso por aqui integralmente com as
suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso
notá-lo, mas não se perde nada em repeti-lo”.
4) Narrativa lenta
e pormenorizada. Se a grande preocupação do escritor realista é com a
análise, claro está que o seu processo narrativo será lento. Os pormenores,
detalhes aparentemente dispensáveis, contribuem, por outro lado, para o painel
ou retrato da realidade que se quer expor.
Em Esaú e Jacó, a
narrativa está cheia de fatos e episódios que não fazem parte propriamente da
história, o que retarda o desfecho: o processo é, pois, lento e pormenorizado.
Como exemplo, veja-se
esta passagem do Cap. XI:
“Perdoa estas
minúcias. A ação podia ir sem elas, Mas eu quero que saibas que casa era, e que
rua e, mais digo que ali havia uma espécie de clube...”
5) Enfoque do tempo presente. O Realismo retrata
a vida contemporânea. Enquanto o romântico se volta para o passado ou se
projeta no futuro, através do sonho, da imaginação, da idealização, o realista
se fixa no presente, porque o que lhe interessa é a vida que o rodeia. Nesse
sentido, justifica-se a crítica, a sátira e a ironia, que se tornam armas com
que os escritores realistas combatem as depravações morais da sociedade, da
qual riem e escarnecem.
Marca registrada de
Machado de Assis, em Esaú e Jacó, abranda-se o tom irônico, não havendo tanta
descrença e tanto niilismo como nas Memórias ou em Quincas Borba.
6) Aspectos simbolistas.
( considerado por
vários críticos literários )
O Simbolismo é um
movimento essencialmente poético, o que não quer dizer que a prosa esteja
totalmente excluída. Inaugurado, oficialmente, entre nós, em 1893, com o livro
Broquéis, de Cruz e Sousa, o Simbolismo é um movimento literário que se
fundamenta basicamente na linguagem figurada - no símbolo, como sugere a
palavra. Com base nisso, depreende-se a busca do etéreo, do vago, da música, do
mistério e do metafísico.
Para o crítico
Cavalcanti Proença, “desde o título, há simbolismo” em Esaú e Jacó, apontando
inúmeros exemplos como aquele “lenço verde” de Natividade, a simbolizar a
esperança no futuro dos gêmeos ou aquela “alma azul” de que o escritor fala no
Cap. XIX:
“Com esse lenço verde
enxugou ela os olhos, e teria outros lenços, se aquele ficasse roto ou
enxovalhado; um, por exemplo, não verde como a esperança, mas azul, como a alma
dela”. Enfim, “ela, aos quarenta anos, era a mesma senhora verde, com a
mesmíssima alma azul”.
Mas, como observa o
citado crítico não ficam aí os exemplos, e, sem esforço, pode-se lembrar que os
dois namorados levam grinaldas à sepultura da moça que ambos amavam. Uma é de
perpétuas, de simbolismo muito evidente, e a outra, mais obscura, de miosótis,
o “forget-me-not” dos ingleses; um dos apaixonados diz de si mesmo “que
o seu amor é que era um substantivo
perpétuo, não precisando mais nada para se definir”.
Outra figura que
lembra o Simbolismo é a moça Flora, que tem muito das virgens vaporosas que
povoam a literatura simbolista e se aproximam das esferas celestes e etéreas.
Também o velho Plácido, “doutor em matérias escusas e complicadas”, conhecedor
de “gestos visíveis e invisíveis”, pode ser colocado aqui como exemplo nesse
sentido.
Estrutura de Esaú E Jacó
1) Ação. O núcleo central do romance gira em torno
da rivalidade entre os dois gêmeos, sendo de fundamental importância aqui
também a presença de Flora.
Pedro e Paulo, os
gêmeos, filhos de Natividade e Santos, nascem sob o signo de uma profecia:
seriam rivais na vida, mas estavam fadados à grandeza: “cousas futuras” - como
previu a cabocla do Castelo.
Nascem e crescem sob
o signo da rivalidade, tal como Esaú e Jacó ou os apóstolos Pedro e Paulo. E
por ironia do destino, amam a mesma mulher, Flora, filha do Batista e de D.
Cláudia. Flora, a eleita dos dois, que também os ama a ambos, acaba morrendo, como
solução para o intrincado impasse.
Pedro e Paulo, depois
de formados - médico e advogado, respectivamente, chegam às “cousas futuras”:
tornam-se deputados.
No romance, é
marcante a figura do Conselheiro Aires, pai espiritual dos gêmeos. Sua presença
acaba por ofuscar as demais, passando de personagem secundária a principal,
“ocupando o centro de toda a narrativa”, como salienta Massaud Moisés.
O drama central do
livro é um triângulo, onde os gêmeos assumem posições opostas e buscam a mesma
mulher (Flora), que tenta uni-los, assentada no seu trono etéreo, inatingível.
Entre eles se põe o Aires, que ocupa o centro do triângulo e do livro, como
guia e pai espiritual dos três.
2) Lugar. A história se desenvolve na cidade do Rio
de Janeiro, com diversas referências a localidades ainda hoje existentes, como
o Morro do Castelo (hoje Esplanada do Castelo), Botafogo, Andaraí e outras.
Mais no fim do romance, a ação se desloca, durante algum tempo, para
Petrópolis.
3) Tempo. Embora Machado seja mestre no tempo psicológico,
aqui a seqüência dos fatos se revela essencialmente cronológica; inicia-se com
a previsão da cabocla do Castelo, em 1871, indo até os primeiros anos da
República (1889). Muitos fatos políticos que se situam nesse espaço de tempo
merecem referências, como é o caso da Proclamação da República, que ocupa mais
de dois capítulos do livro.
4) Personagens. Com exceção do Conselheiro Aires, todas as
personagens de Esaú e Jacó são fracas e estão muito longe da complexidade
humana das grandes personagens machadianas. Todas elas, com exceção do Aires,
podem ser classificadas como planas, dada a fragilidade que encerram. Observe:
a) O Conselheiro
Aires: acaba ocupando o centro de toda a narrativa, dada a sua importância
no romance como guia espiritual dos meninos. Era estimado e respeitado pela sua
conduta ímpar, pela sua hombridade, experiência e dignidade. O título que
ostenta - conselheiro - é mais um rótulo feliz de seu papel ao pé daqueles com
quem convive do que uma simples referência à glória diplomática. Como observa
Massaud Moisés, “é um homem de nervos, sangue, cheio de humanidade, de
contradição por isso mesmo, dono duma vitalidade incomum à idade e,
simultaneamente, duma melancólica e conformista visão da existência”, no que
lembra o próprio Machado de Assis. Em suma, “Aires é a crença no homem e no seu
destino terreno” e revela na obra um gosto pela vida que encanta pela alta dose
de sinceridade e pela concepção estóica e sábia da existência.
b) Pedro e Paulo:
são os gêmeos que dão nome ao livro (Esaú e Jacó). Caracteriza-os uma
rivalidade que remonta ao ventre materno, quando já brigavam.
Não constituem
individualidades autônomas, não passando de símbolos da dualidade do ser
humano, na sua natureza complexa e intrincada, que só uma Flora pode ver e “explicar”:
“No valor e no ímpeto
podia comparar o coração ao gêmeo Paulo; o espírito, pela arte e sutileza,
seria o gêmeo Pedro”. E que são o “coração” e o “espírito” senão dualidades do
mesmo ser? Era certamente por isso que Flora não os distinguia, chamando Paulo
de Pedro e vice-versa:
“Em vão eles mudavam
da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Flora mudava os nomes
também, e os três acabavam rindo”.
Mas a dupla
Pedro-Paulo é não só símbolo da dualidade do ser humano como também um meio de
Machado pôr a vivo a situação política dos fins do século XIX, em que
igualmente está implícita a ambigüidade humana: Pedro era monarquista
(conservador), Paulo republicano (liberal): “A razão parece-me ser que o
espírito de inquietação está em Paulo, e o de conservação em Pedro”.
Segundo a
caracterização do Aires, ainda dentro dessa linha de oposições, o perfil de
Pedro estava no início da Odisséia, de Homero:
“- Musa, canta aquele
herói astuto, que errou por tantos tempos, depois de destruída a santa llion...”
O de Paulo no começo
da Ilíada:
“- Musa, canta a
cólera de Aquiles, filho de Peleu, cólera funesta aos gregos, que precipitou à
estância
de Plutão tantas
almas válidas de heróis, entregues os corpos às aves e aos cães...”
Quer dizer, Pedro era
astuto como Ulisses; Paulo, colérico como Aquiles.
Enfim, como ressalta
o crítico Affonso Romano, “a narrativa machadiana desenvolve-se
sistematicamente explorando a duplicidade através de um jogo de oposições”, em
que Pedro e Paulo estão como “a dualidade básica do livro”.
E assim termina o
livro: os gêmeos, agora deputados - “eleitos em oposição um ao outro” -
continuavam rivalizando pela vida: eles eram “os mesmos, desde o útero” -
assevera o Aires. Assim é o homem, desde a criação, feito à imagem e semelhança
de Deus...
c) Flora: é uma personagem que atravessa a sua curta
existência sem perturbar ninguém, ofuscando-se no ocaso da vida sem nenhuma
manifestação de natureza ruidosa. “Flora toca-nos, comove-nos até, mas
desaparece mansamente do romance como desaparece mansamente de nossa memória
sem deixar maior rasto impressivo, como deixa Capitu para sempre e sempre”.
Flora não é uma
personagem de carne e osso, como o é Sofia (Quincas Borba) ou Capitu (D.
Casmurro). É antes uma idéia poética, um ideal de juventude do que propriamente
uma personagem.
“Por pouco é uma
heroína romântica, não fosse haver ao todo de sua personalidade um grão de
mistério para além dos problemas de ordem amorosa”: vive de leve, morre de
leve, sem perturbar ninguém com sua presença, como se não tivesse direito à
vida, ou se sua presença fosse o motivo da discórdia entre os dois irmãos, que
ela confunde numa só pessoa. Enfim, como a vê o Aires, Flora é uma criatura
inexplicável.
d) Batista - D. Cláudia: São os pais de Flora. D.
Cláudia é o retrato da mulher forte, que subjuga o marido fraco. Em muitas
partes, “D. Cláudia sobe como personagem, ainda que desça como criatura, pela
estreiteza de seus desígnios egoísticos.” A fraqueza do Batista e a fortaleza
da mulher podem ser vistas no Cap. XLVII, onde Machado coloca a mulher como
sinônimo do diabo. O Batista é o tipo do político que quer subir, mas é fraco;
D. Cláudia a mulher ambiciosa que quer tudo para o marido, porque serão delas
os privilégios e regalias do sucesso e das glórias dele.
e) Natividade – Santos: São os pais dos gêmeos. Ela,
esposa dedicada e mãe extremada, que não hesita em se expor à opinião pública
em favor dos filhos, como no caso da consulta à cabocla do Castelo, aonde foi
juntamente com a irmã, Perpétua: “tinha fé, mas tinha também vexame da
opinião”. Ele, comerciante bem sucedido e banqueiro de grande respeito na
praça, como toda personagem machadiana. Daí até o baronato foi um pulo: “...no
despacho imperial da véspera o Sr. Agostinho José dos Santos fora agraciado com
o titulo de Barão de Santos.”
f) Nóbrega: É o “irmão das almas”, que aparece no
início do livro tirando esmola “para a missa das almas”. Depois fica rico sem
fazer muito esforço, beneficiado que foi pela esmola “graúda” de Natividade
(como ocorre no início do romance) e pela política do “encilhamento”, famosa na
história do Brasil. Foi um dos pretendentes de Flora e representa uma das
inúmeras caricaturas machadianas.
g) Plácido: É “doutor em matérias escusas e
complexas”, que procura explicar a rivalidade dos gêmeos. Morre desenvolvendo a
teoria da “correspondência das letras vogais com os sentidos do homem”.
h) Perpétua: Irmã de Natividade e, portanto, tia dos
gêmeos. É a responsável pelos nomes dos meninos, que, segundo Machado, os tirou
do Credo, “estando à missa”, o que constitui um “cochilo”
machadiano, pois, no
Credo, não há referência aos apóstolos Pedro e Paulo. Certamente quis dizer no
“Confiteor”, onde os dois apóstolos estão presentes.
i) Rita: É a mana do Aires, com quem Flora vai
passar uma temporada, em cuja casa acaba morrendo.
Era viúva e se
vangloriava de “ter cortado os cabelos por haver perdido o melhor dos maridos”.
ASPECTOS TEMÁTICOS MARCANTES
Embora Esaú e Jacó
apresente a juventude de Flora e dos gêmeos, além de outros, bem como a idade
provecta do Aires, marcada pela serenidade e sabedoria, temas que podem ser
estudados no livro, o núcleo principal do romance é a dualidade do ser humano.
Ao abordá-lo, Machado
de Assis faz um retrato do momento político brasileiro, em que o Brasil passa
de Império a República, mudança que tem um tratamento irônico no livro.
1) Dualidade do ser humano. É o que está
explicito no próprio título do livro: Esaú e Jacó, figuras bíblicas que rotulam
o romance, filhos de lsaac e Rebeca, que se caracterizaram pela rivalidade. No
romance, os irmãos
têm nome de Pedro e Paulo, o que evoca os
dois apóstolos, também rivais, segundo a explicação do velho Plácido.
Pedro e Paulo, como
já ressaltado “não são individualidades autônomas”, não são pessoas físicas,
mas símbolos, representação duma dualidade radical no homem, desde a criação,
como faz sugerir a expressão “desde o
útero” e a “flor
eterna” do Aires, no final do romance: o homem nasceu assim, é assim, e será
eternamente assim.
O drama, que
constitui o caso psicológico e humano abordado no romance, resulta de serem os
gêmeos dois e não um. Quer dizer, os dois gênios (Pedro e Paulo) que deveriam
nascer em um, nascem em dois. Os dois aspectos que deviam estar numa só pessoa,
como é normal, brotam em duas.
Machado poderia muito
bem pegar uma só pessoa e analisar-lhe essa complexidade dual. Não o fez.
Preferiu isolar os
dois componentes básicos do ser humano: coração (Paulo) e espírito (Pedro),
para usar a nomenclatura de Flora. Isolados em dois, seria mais fácil a
dissecação do ser humano, a análise da complexidade antitética do homem.
É isso que Machado
quer insinuar: todos nós temos dois gênios (=gêmeos) dentro de nós. Com outras
palavras: todos nós temos um Pedro (espírito) e um Paulo (coração). Ora somos
inquietos, como Paulo, ora dissimulados, como Pedro; ora republicanos (Paulo),
ora conservadores (Pedro).
Por isso mesmo é que
Flora os confundia numa só pessoa: Pedro era o lado que faltava em Paulo, e
Paulo era o lado que faltava em Pedro; um completava o outro, porque cada um
deles não era uma pessoa completa: “Flora sentiu a falta de Pedro, como sentira
a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. Ambas traziam a
ausência de um gêmeo”.
Também nesse sentido
está aquele desenho de Flora, “em que estavam desenhadas duas cabeças juntas e
iguais”, que o Aires identificou com os gêmeos, observando que “as duas cabeças
estavam ligadas por um vínculo escondido”.
Nesse sentido, outra
passagem ainda que merece destaque é a cena da morte de Flora, quando os gêmeos
“queriam entrar ambos” no quarto, e Flora tem esta expressiva pergunta que é
tomada como delírio da moça:
“- Ambos quais?
perguntou Flora.”
Mas o Aires, que
conhece e sabe tudo, “rejeitou o delírio”: os gêmeos eram uma só pessoa e,
portanto, não podiam ser “ambos”.
Enfim, assim termina
o romance: os dois gêmeos deputados com prenúncio de que seriam maiores ainda -
Presidente da República, certamente. O pior é que “a presidência da República
não podia ser para dous”, e eles eram um em dois, criados à imagem e semelhança
de Deus, que é um em três...
2) Momento político brasileiro. A narrativa
machadiana vem entrecortada de fatos políticos da história do Brasil: a
abolição da escravatura, em 1888, vem aí mencionada opacamente, mas servindo
para Paulo tecer considerações nitidamente de sentido republicano “A abolição é
a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o
branco”. A “emancipação do branco” seria a
República, o que “era
uma ameaça ao imperador e ao império”, conforme pressente Natividade.
Chega rápida e
mansamente a República, da noite para o dia (“Noite de 14” e “Manhã de 15”), o
que Machado vai ironizar com a “tabuleta do Custódio”, que caía aos pedaços com
a “madeira rachada e comida de bichos”. Era então a “Confeitaria do Império”.
Era preciso uma reforma, e
o Custódio, embora a
contragosto, envia-a ao pintor. Nem bem este tinha acabado a sua obra (estava
no “d”), proclama-se a República, sem ao menos avisarem ao pobre homem...
Custódio estava desesperado. Em vão o Aires procura consolá-lo, observando que
nem tudo estava perdido. Poderia perfeitamente trocar de nome. O pintor
arara no “d”
(“Confeitaria d”). Era fácil acrescentar “República” (“Confeitaria da
República”), ao que o Custódio responde:
“Lembrou-me isso, em
caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dous meses, houver nova
reviravolta, fico no ponto em que estou
hoje, e perco outra vez o dinheiro”.
Mas como insinua o
Aires, agora junto ao Santos, “nada se mudaria; o regime, sim era possível, mas
também
se muda de roupa sem mudar de pele (...);
tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição”.
ESTUDO
FINAL DO ENREDO
É o romance da
ambigüidade, narrado em terceira pessoa, pelo Conselheiro Aires. Pedro e Paulo
seriam “os dois lados da verdade”.
À medida que vão
crescendo, os irmãos começam a definir seus temperamentos diversos: são rivais
em tudo. Paulo é impulsivo, arrebatado, Pedro é dissimulado e conservador, o
que vem a ser motivo de brigas entre os dois. Já adultos, a causa principal de
suas divergências passa a ser de ordem política: Paulo é republicano e Pedro,
monarquista. Estamos em plena época da Proclamação da República, quando decorre
a ação do romance.
Até em seus amores,
os gêmeos são competitivos. Flora, a moça de quem ambos gostam, se entretém com
um e outro, sem se decidir por nenhum dos dois: é retraída, modesta, e seu
temperamento avesso a festas e alegrias levou o Conselheiro Aires a dizer que
ela era “inexplicável”. O conselheiro é mais um grande personagem da galeria
machadiana, que reaparecerá como memorialista no próximo e último romance do
autor: velho diplomata aposentado, de hábitos discretos e gosto requintado,
amante de citações eruditas, muitas vezes parece exprimir o pensamento do
próprio romancista.
As divergências entre
os irmãos persistem, muito embora, com a morte de Flora, tenham jurado junto a
seu túmulo uma reconciliação perpétua. Continuam a se desentender, agora em
plena tribuna, depois que ambos se elegeram deputados, e só se reconciliam ao fim
do livro, com novo juramento de amizade eterna, este feito junto ao leito da
mãe agonizante.
No texto a seguir,
transcrito do capítulo XVIII de Esaú e Jacó, um retrato de como vieram
crescendo os dois gêmeos.
Obedeciam aos pais
sem grande esforço, posto fossem teimosos. Nem mentiam mais que outros meninos
da cidade. Ao cabo, a mentira é alguma vez meia virtude. Assim é que, quando
eles disseram não ter visto furtar um relógio da mãe, presente do pai, quando
eram noivos, mentiram conscientemente, porque a criada que o tirou foi apanhada
por eles em plena ação de furto. Mas era tão amiga deles! -e com tais lágrimas
lhes pediu que não dissessem a ninguém, que os gêmeos negaram absolutamente ter
visto nada. Contavam sete anos. Aos nove, quando já a moça ia longe, é que
descobriram, não sei a que propósito, o caso escondido. A mãe quis saber por
que é que eles calaram outrora; não souberam explicar-se, mas é claro que o
silêncio de 1878 foi obra da afeição e da piedade, e daí a meia virtude, porque
é alguma cousa pagar amor com amor Quanto à revelação de 1880 só se pode
explicar pela distância do tempo. Já não estava presente a boa Miquelina;
talvez já estivesse morta. Demais, veio tão naturalmente a referência...
— Mas, por que é que
vocês até agora não me disseram? Teimava a mãe.
Não sabendo mais que
razão dessem um deles, creio que Pedro, resolveu acusar o irmão:
— Foi ele, mamãe!
— Eu? Redargüiu
Paulo. Foi ele, mamãe, ele é que não disse nada.
— Foi você!
— Foi você! Não
minta!
— Mentiroso é ele!
Cresceram um para o
outro. Natividade acudiu prestemente, não tanto que impedisse a troca dos
primeiros murros. Segurou-lhes os braços a tempo de evitar outros, e, em vez de
os castigar ou ameaçar beijou-os com tamanha ternura que eles não acharam
melhor ocasião de lhe pedir doce. Tiveram doce; tiveram também um passeio, à
tarde, no carrinho do pai.
Na volta estavam
amigos ou reconciliados, Contaram à mãe o passeio, a gente da rua, as outras
crianças que olhavam para eles com inveja, uma que metia o dedo na boca, outra
no nariz, e as moças que estavam às janelas, algumas que os acharam bonitos.
Neste último ponto divergiam, porque cada um deles tomava para si só as
admirações, mas a mãe interveio:
— Foi para ambos.
Vocês são tão parecidos, que não podia ser senão para ambos. E sabem por que é
que as moças elogiaram vocês? Foi por ver que iam amigos, chegadinhos um ao
outro. Meninos bonitos não brigam, ainda menos sendo irmãos. Quero vê-los
quietos e amigos, brincando juntos sem rusga nem nada. Estão entendendo?
Pedro respondeu que
sim; Paulo esperou que a mãe repetisse a pergunta, e deu igual resposta. Enfim,
porque esta mandasse, abraçaram-se, mas foi um abraçar sem gosto, sem força,
quase sem braços; encostaram-se um ao outro, estenderam as mãos às costas do
irmão, e deixaram-nas cair.
De noite, na alcova,
cada um deles concluiu para si que devia os obséquios daquela tarde, o doce, os
beijos e o carro, à briga que tiveram, e que outra briga podia render tanto ou
mais. Sem palavras, como um romance ao piano, resolveram ir à cara um do outro,
na primeira ocasião. Isto que devia ser um laço armado à ternura da mãe, trouxe
ao coração de ambos uma sensação particular; que não era só consolo e desforra
do soco recebido naquele dia, mas também satisfação de um desejo íntimo, profundo,
necessário, Sem ódio, disseram ainda algumas palavras de cama a cama, riram de
uma ou outra lembrança da rua, até que o sono entrou com os seus pés de lã e
bico calado, e tomou conta da alcova inteira.
Neste outro texto, do
início do livro, relata-se a reação de Natividade, mãe dos gêmeos diante da
gravidez. Observe o sentimento negativo diante da maternidade, a quase recusa
da gestação e das alterações que ela provoca no corpo, além da limitação que
impõe à vida social.
Nos primeiros dias,
os sintomas desconcertaram a nossa amiga. E duro dizê-lo, mas é verdade. Lá se
iam bailes e festas, lá ia à liberdade e a folga. Natividade andava já na alta
roda do tempo; acabou de entrar por ela, com tal arte que parecia haver ali
nascido. Carteava-se com grandes damas, era familiar de muitas, tuteava
algumas. Nem tinha só esta casa de Botafogo, mas também outra em Petrópolis;
nem só carro, mas também camarote no Teatro Lírico, não contando os bailes do
Cassino Fluminense, os das amigas e os seus, todo o repertório, em suma, de
vida elegante. Era nomeada nas gazetas, pertencia àquela dúzia de nomes
planetários que figuram no meio da plebe de estrelas. O marido era capitalista
e diretor de um banco.
No meio disso, a que
vinha agora uma criança deformá-la por meses, obrigá-la a recolher-se,
pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o resto? Tal foi à primeira sensação
da mãe, e o primeiro ímpeto foi esmagar o gérmen. Criou raiva ao marido.
Ao final do livro,
Natividade, já agonizante, obtém dos filhos o juramento de reconciliação. Mas,
como já acontecera na morte de Flora, a reconciliação era provisória, e duraria
até pouco depois do enterro da mãe:
Ora, o que a mãe fez,
quando eles entraram e fecharam a porta do quarto, foi pedir-lhes que ficasse
cada um do lado da cama e lhe estendessem a destra. Juntou-as sem força e
fechou-as em suas mãos, ardentes. Depois, com a voz expirante e os olhos acesos
apenas de febre, pediu-lhes um favor grande e único. Eles iam chorando e
calando, porventura adivinhando o favor.
— Um favor
derradeiro, insistiu ela.
— Diga, mamãe.
— Vocês vão ser
amigos. Sua mãe padecerá no outro mundo se os não vir amigos neste. Peço pouco;
a vossa vida custou-me muito, a criação também, e a minha esperança era vê-los
grandes homens. Deus não quer, paciência. Eu é que quero saber que não deixo
dois ingratos. Anda Pedro, anda Paulo, jurem que serão amigos.
Os moços choravam. Se
não falavam, é porque a voz não lhes queria sair da garganta. Quando pôde, saiu
trêmula, mas clara e forte.
— Juro, mamãe!
— Juro, mamãe!
— Amigos para todo
sempre?
— Sim.
— Sim.
— Não quero outras
saudades. Estas somente, a amizade verdadeira, e que se não quebre nunca mais.
Natividade ainda
conservou as mãos deles presas, sentiu-as trêmulas de comoção, e esteve calada
alguns instantes.
— Posso morrer
tranqüila.
— Não, mamãe não
morre, interromperam ambos.
Parece que a mãe quis
sorrir a esta palavra de confiança, mas a boca não respondeu à intenção, antes
fez um trejeito que assustou os filhos. Paulo correu a pedir socorro. Santos
entrou desorientado no quarto, a tempo de ouvir à esposa algumas palavras
suspiradas e derradeiras.
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