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segunda-feira, 12 de novembro de 2012

ESAÚ E JACÓ - Machado de Assis



Publicado em 1904, Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis.
O título é extraído da Bíblia e remetendo-nos ao Gênesis: à história de Rebeca, que privilegia o filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, fazendo-os inimigos irreconciliáveis. A inimizade dos gêmeos Pedro e Paulo, do romance de Machado, não tem causa explícita, daí a denominação de romance "Ab Ovo" (desde o ovo).
É o romance da ambigüidade, narrado em 3ª pessoa, pelo Conselheiro Aires. Pedro e Paulo seriam "os dois lados da verdade". Filhos gêmeos de Natividade e Agostinho Santos, à medida que vão crescendo, os irmãos começam a definir seus temperamentos diversos: são rivais em tudo.
Paulo é impulsivo, arrebatado, Pedro é dissimulado e conservador - o que vem a ser motivo de brigas entre os dois. Já adultos, a causa principal de suas divergências passa a ser de ordem política - Paulo é republicano e Pedro, monarquista. Estamos em plena época da Proclamação da República, quando decorre a ação do romance.
Para apaziguar a discórdia fraterna, de nada valem os conselhos de Aires, amigo de Natividade, nem as previsões de discórdia e grandeza feitas por uma adivinha (A Cabocla do Castelo), quando os gêmeos tinham ainda um ano.
Até em seus amores, os gêmeos são competitivos. Flora, a moça de quem ambos gostam, se entretém com um e outro, sem se decidir por nenhum dos dois. Além disso, a moça é retraída, modesta, e seu temperamento avesso a festas e alegrias, levou o Conselheiro Aires a dizer que ela era "inexplicável".
O conselheiro Aires é mais uma grande personagem da galeria machadiana, que reaparecerá como memorialista no próximo e último romance do autor: velho diplomata aposentado, de hábitos discretos e gosto requintado, amante de citações eruditas, muitas vezes interpreta o pensamento do próprio romancista.
As divergências entre os irmãos continuam, muito embora, com a morte de Flora, tenham jurado junto a seu túmulo uma reconciliação perpétua. A morte da moça, porém, une temporariamente os gêmeos, mais tarde, também a morte de Natividade cria uma trégua entre ambos, mas logo se lançam às disputas.
Continuam a se desentender, agora em plena tribuna, depois que ambos se elegeram deputados por dois partidos diferentes. Absolutamente irreconciliáveis, cumpre-se, portanto, a previsão da adivinha: ambos seriam grandes, mas inimigos.






O ESTILO DE ÉPOCA

Cronologicamente, Esaú e Jacó é um livro que surgiu nos fins do Realismo (1904), estando fora da fase áurea do Realismo brasileiro e da ficção machadiana (1880-1900). Isso quer dizer que se torna difícil enquadrar o romance nos moldes realistas, como quer a crítica, ao situá-lo na segunda fase de Machado de Assis. Talvez mais correto seria localizá-lo numa terceira fase... Além do mais, por essa época (1893), surgia um novo estilo - o Simbolismo, que, apesar de ser um movimento essencialmente poético, vai manifestar-se no livro de Machado de Assis.
Não obstante, alguns aspectos do Realismo podem ser detectados:
1) Fidelidade na descrição de situações e personagens. A verdade dos fatos é uma das principais preocupações realistas. Ser fiel àquilo que descreve é uma norma que o escritor realista, tanto quanto possível, procura seguir. Ao se comparar o escritor realista com o romântico, vê-se que este se caracteriza pela fantasia, pela imaginação, pelo idealismo. O escritor realista é, mais ou menos, o oposto: encara a realidade direta e objetivamente e procura mostrar o que é, não o que deve ser, como os românticos.
Em diversas passagens, Machado se preocupa com a verdade dos fatos, em ser fiel àquilo que narra, como é o caso desta passagem do Cap. V:
“Não me peças a causa de tanto encolhimento no anúncio e na missa, e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Há contradições explicáveis. Um bom autor, que inventasse a sua história,
ou prezasse a lógica aparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as causas se passaram, e refiro-as tais quais. Quando muito, explico-as, com a condição de que tal costume não pegue”.
Quanto à autenticidade das personagens, é difícil perceber no livro, com exceção do Conselheiro Aires, que acaba “ocupando o centro de toda a narrativa”, como ressalta Massaud Moisés. Outras personagens, como Pedro, Paulo e Flora, lembram figuras românticas. Flora, por exemplo “é moça, virgem, e morre de doença estranha, mal de sentimento ou coisa parecida” (Massaud Moisés).
2) Gosto pela análise. A análise é uma característica básica na ficção realista, principalmente a análise psicológica.
Esaú e Jacó, atém-se à análise da complexidade dual do ser humano. Em inúmeras passagens encontra-se essa preocupação de analisar, onde Machado procura desvendar e esclarecer os segredos da alma humana, como é o caso do excerto abaixo, extraído do Cap. XCIII:
“Talvez a causa daquelas síncopes da conversação fosse a viagem que o espírito da moça fazia à casa da gente Santos. Uma das vezes, o espírito voltou para dizer estas


palavras ao coração: “Quem és tu, que não atas nem desatas? Melhor é que os deixes de vez. Não será difícil

a ação, porque a lembrança de um acabará por destruir a de outro, e ambas se irão perder com o vento, que arrasta as folhas velhas e novas, além das partículas de cousas,

tão leves e pequenas, que escapam ao olho humano.
Anda, esquece-os: se os não podes esquecer, faze por não os ver mais; o tempo e a distância farão o resto”.


3) Objetividade a impessoalidade. Não resta dúvida que essa é uma característica que reflete a época do cientificismo, da precisão, da observação. Ao contrário do Romantismo, no Realismo o escritor não interfere na conduta de suas personagens; tanto quanto possível, ele se afasta delas, desenvolvendo assim uma narrativa objetiva e impessoal.
No romance em questão, é fácil perceber essa característica, embora o Conselheiro Aires tenha muito de Machado de Assis: é um homem cordato, grave, ponderado, equilibrado, inteligente como o próprio escritor. Mas o livro em si retrata uma situação que é vista e narrada por um observador que procura ser objetivo e impessoal, como se revela na passagem abaixo, do Cap. XLVIII:
“Ao cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso por aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso notá-lo, mas não se perde nada em repeti-lo”.
4) Narrativa lenta e pormenorizada. Se a grande preocupação do escritor realista é com a análise, claro está que o seu processo narrativo será lento. Os pormenores, detalhes aparentemente dispensáveis, contribuem, por outro lado, para o painel ou retrato da realidade que se quer expor.
Em Esaú e Jacó, a narrativa está cheia de fatos e episódios que não fazem parte propriamente da história, o que retarda o desfecho: o processo é, pois, lento e pormenorizado.
Como exemplo, veja-se esta passagem do Cap. XI:
“Perdoa estas minúcias. A ação podia ir sem elas, Mas eu quero que saibas que casa era, e que rua e, mais digo que ali havia uma espécie de clube...”
5) Enfoque do tempo presente. O Realismo retrata a vida contemporânea. Enquanto o romântico se volta para o passado ou se projeta no futuro, através do sonho, da imaginação, da idealização, o realista se fixa no presente, porque o que lhe interessa é a vida que o rodeia. Nesse sentido, justifica-se a crítica, a sátira e a ironia, que se tornam armas com que os escritores realistas combatem as depravações morais da sociedade, da qual riem e escarnecem.
Marca registrada de Machado de Assis, em Esaú e Jacó, abranda-se o tom irônico, não havendo tanta descrença e tanto niilismo como nas Memórias ou em Quincas Borba.

6) Aspectos simbolistas.

( considerado por vários críticos literários )
O Simbolismo é um movimento essencialmente poético, o que não quer dizer que a prosa esteja totalmente excluída. Inaugurado, oficialmente, entre nós, em 1893, com o livro Broquéis, de Cruz e Sousa, o Simbolismo é um movimento literário que se fundamenta basicamente na linguagem figurada - no símbolo, como sugere a palavra. Com base nisso, depreende-se a busca do etéreo, do vago, da música, do mistério e do metafísico.
Para o crítico Cavalcanti Proença, “desde o título, há simbolismo” em Esaú e Jacó, apontando inúmeros exemplos como aquele “lenço verde” de Natividade, a simbolizar a esperança no futuro dos gêmeos ou aquela “alma azul” de que o escritor fala no Cap. XIX:



“Com esse lenço verde enxugou ela os olhos, e teria outros lenços, se aquele ficasse roto ou enxovalhado; um, por exemplo, não verde como a esperança, mas azul, como a alma dela”. Enfim, “ela, aos quarenta anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma azul”.
Mas, como observa o citado crítico não ficam aí os exemplos, e, sem esforço, pode-se lembrar que os dois namorados levam grinaldas à sepultura da moça que ambos amavam. Uma é de perpétuas, de simbolismo muito evidente, e a outra, mais obscura, de miosótis, o “forget-me-not” dos ingleses; um dos apaixonados diz de si mesmo “que
o seu amor é que era um substantivo perpétuo, não precisando mais nada para se definir”.
Outra figura que lembra o Simbolismo é a moça Flora, que tem muito das virgens vaporosas que povoam a literatura simbolista e se aproximam das esferas celestes e etéreas. Também o velho Plácido, “doutor em matérias escusas e complicadas”, conhecedor de “gestos visíveis e invisíveis”, pode ser colocado aqui como exemplo nesse sentido.
Estrutura de Esaú E Jacó

1) Ação. O núcleo central do romance gira em torno da rivalidade entre os dois gêmeos, sendo de fundamental importância aqui também a presença de Flora.
Pedro e Paulo, os gêmeos, filhos de Natividade e Santos, nascem sob o signo de uma profecia: seriam rivais na vida, mas estavam fadados à grandeza: “cousas futuras” - como previu a cabocla do Castelo.
Nascem e crescem sob o signo da rivalidade, tal como Esaú e Jacó ou os apóstolos Pedro e Paulo. E por ironia do destino, amam a mesma mulher, Flora, filha do Batista e de D. Cláudia. Flora, a eleita dos dois, que também os ama a ambos, acaba morrendo, como solução para o intrincado impasse.
Pedro e Paulo, depois de formados - médico e advogado, respectivamente, chegam às “cousas futuras”: tornam-se deputados.
No romance, é marcante a figura do Conselheiro Aires, pai espiritual dos gêmeos. Sua presença acaba por ofuscar as demais, passando de personagem secundária a principal, “ocupando o centro de toda a narrativa”, como salienta Massaud Moisés.
O drama central do livro é um triângulo, onde os gêmeos assumem posições opostas e buscam a mesma mulher (Flora), que tenta uni-los, assentada no seu trono etéreo, inatingível. Entre eles se põe o Aires, que ocupa o centro do triângulo e do livro, como guia e pai espiritual dos três.
2) Lugar. A história se desenvolve na cidade do Rio de Janeiro, com diversas referências a localidades ainda hoje existentes, como o Morro do Castelo (hoje Esplanada do Castelo), Botafogo, Andaraí e outras. Mais no fim do romance, a ação se desloca, durante algum tempo, para Petrópolis.
3) Tempo. Embora Machado seja mestre no tempo psicológico, aqui a seqüência dos fatos se revela essencialmente cronológica; inicia-se com a previsão da cabocla do Castelo, em 1871, indo até os primeiros anos da República (1889). Muitos fatos políticos que se situam nesse espaço de tempo merecem referências, como é o caso da Proclamação da República, que ocupa mais de dois capítulos do livro.
4) Personagens. Com exceção do Conselheiro Aires, todas as personagens de Esaú e Jacó são fracas e estão muito longe da complexidade humana das grandes personagens machadianas. Todas elas, com exceção do Aires, podem ser classificadas como planas, dada a fragilidade que encerram. Observe:
a) O Conselheiro Aires: acaba ocupando o centro de toda a narrativa, dada a sua importância no romance como guia espiritual dos meninos. Era estimado e respeitado pela sua conduta ímpar, pela sua hombridade, experiência e dignidade. O título que ostenta - conselheiro - é mais um rótulo feliz de seu papel ao pé daqueles com quem convive do que uma simples referência à glória diplomática. Como observa Massaud Moisés, “é um homem de nervos, sangue, cheio de humanidade, de contradição por isso mesmo, dono duma vitalidade incomum à idade e, simultaneamente, duma melancólica e conformista visão da existência”, no que lembra o próprio Machado de Assis. Em suma, “Aires é a crença no homem e no seu destino terreno” e revela na obra um gosto pela vida que encanta pela alta dose de sinceridade e pela concepção estóica e sábia da existência.
b) Pedro e Paulo: são os gêmeos que dão nome ao livro (Esaú e Jacó). Caracteriza-os uma rivalidade que remonta ao ventre materno, quando já brigavam.
Não constituem individualidades autônomas, não passando de símbolos da dualidade do ser humano, na sua natureza complexa e intrincada, que só uma Flora pode ver e “explicar”:
“No valor e no ímpeto podia comparar o coração ao gêmeo Paulo; o espírito, pela arte e sutileza, seria o gêmeo Pedro”. E que são o “coração” e o “espírito” senão dualidades do mesmo ser? Era certamente por isso que Flora não os distinguia, chamando Paulo de Pedro e vice-versa:
“Em vão eles mudavam da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Flora mudava os nomes também, e os três acabavam rindo”.
Mas a dupla Pedro-Paulo é não só símbolo da dualidade do ser humano como também um meio de Machado pôr a vivo a situação política dos fins do século XIX, em que igualmente está implícita a ambigüidade humana: Pedro era monarquista (conservador), Paulo republicano (liberal): “A razão parece-me ser que o espírito de inquietação está em Paulo, e o de conservação em Pedro”.
Segundo a caracterização do Aires, ainda dentro dessa linha de oposições, o perfil de Pedro estava no início da Odisséia, de Homero:
“- Musa, canta aquele herói astuto, que errou por tantos tempos, depois de destruída a santa llion...”
O de Paulo no começo da Ilíada:
“- Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu, cólera funesta aos gregos, que precipitou à estância
de Plutão tantas almas válidas de heróis, entregues os corpos às aves e aos cães...”
Quer dizer, Pedro era astuto como Ulisses; Paulo, colérico como Aquiles.
Enfim, como ressalta o crítico Affonso Romano, “a narrativa machadiana desenvolve-se sistematicamente explorando a duplicidade através de um jogo de oposições”, em que Pedro e Paulo estão como “a dualidade básica do livro”.
E assim termina o livro: os gêmeos, agora deputados - “eleitos em oposição um ao outro” - continuavam rivalizando pela vida: eles eram “os mesmos, desde o útero” - assevera o Aires. Assim é o homem, desde a criação, feito à imagem e semelhança de Deus...
c) Flora: é uma personagem que atravessa a sua curta existência sem perturbar ninguém, ofuscando-se no ocaso da vida sem nenhuma manifestação de natureza ruidosa. “Flora toca-nos, comove-nos até, mas desaparece mansamente do romance como desaparece mansamente de nossa memória sem deixar maior rasto impressivo, como deixa Capitu para sempre e sempre”.
Flora não é uma personagem de carne e osso, como o é Sofia (Quincas Borba) ou Capitu (D. Casmurro). É antes uma idéia poética, um ideal de juventude do que propriamente uma personagem.
“Por pouco é uma heroína romântica, não fosse haver ao todo de sua personalidade um grão de mistério para além dos problemas de ordem amorosa”: vive de leve, morre de leve, sem perturbar ninguém com sua presença, como se não tivesse direito à vida, ou se sua presença fosse o motivo da discórdia entre os dois irmãos, que ela confunde numa só pessoa. Enfim, como a vê o Aires, Flora é uma criatura inexplicável.
d) Batista - D. Cláudia: São os pais de Flora. D. Cláudia é o retrato da mulher forte, que subjuga o marido fraco. Em muitas partes, “D. Cláudia sobe como personagem, ainda que desça como criatura, pela estreiteza de seus desígnios egoísticos.” A fraqueza do Batista e a fortaleza da mulher podem ser vistas no Cap. XLVII, onde Machado coloca a mulher como sinônimo do diabo. O Batista é o tipo do político que quer subir, mas é fraco; D. Cláudia a mulher ambiciosa que quer tudo para o marido, porque serão delas os privilégios e regalias do sucesso e das glórias dele.
e) Natividade – Santos: São os pais dos gêmeos. Ela, esposa dedicada e mãe extremada, que não hesita em se expor à opinião pública em favor dos filhos, como no caso da consulta à cabocla do Castelo, aonde foi juntamente com a irmã, Perpétua: “tinha fé, mas tinha também vexame da opinião”. Ele, comerciante bem sucedido e banqueiro de grande respeito na praça, como toda personagem machadiana. Daí até o baronato foi um pulo: “...no despacho imperial da véspera o Sr. Agostinho José dos Santos fora agraciado com o titulo de Barão de Santos.”
f) Nóbrega: É o “irmão das almas”, que aparece no início do livro tirando esmola “para a missa das almas”. Depois fica rico sem fazer muito esforço, beneficiado que foi pela esmola “graúda” de Natividade (como ocorre no início do romance) e pela política do “encilhamento”, famosa na história do Brasil. Foi um dos pretendentes de Flora e representa uma das inúmeras caricaturas machadianas.
g) Plácido: É “doutor em matérias escusas e complexas”, que procura explicar a rivalidade dos gêmeos. Morre desenvolvendo a teoria da “correspondência das letras vogais com os sentidos do homem”.
h) Perpétua: Irmã de Natividade e, portanto, tia dos gêmeos. É a responsável pelos nomes dos meninos, que, segundo Machado, os tirou do Credo, “estando à missa”, o que constitui um “cochilo”
machadiano, pois, no Credo, não há referência aos apóstolos Pedro e Paulo. Certamente quis dizer no “Confiteor”, onde os dois apóstolos estão presentes.
i) Rita: É a mana do Aires, com quem Flora vai passar uma temporada, em cuja casa acaba morrendo.
Era viúva e se vangloriava de “ter cortado os cabelos por haver perdido o melhor dos maridos”.


ASPECTOS TEMÁTICOS MARCANTES

Embora Esaú e Jacó apresente a juventude de Flora e dos gêmeos, além de outros, bem como a idade provecta do Aires, marcada pela serenidade e sabedoria, temas que podem ser estudados no livro, o núcleo principal do romance é a dualidade do ser humano.
Ao abordá-lo, Machado de Assis faz um retrato do momento político brasileiro, em que o Brasil passa de Império a República, mudança que tem um tratamento irônico no livro.
1) Dualidade do ser humano. É o que está explicito no próprio título do livro: Esaú e Jacó, figuras bíblicas que rotulam o romance, filhos de lsaac e Rebeca, que se caracterizaram pela rivalidade. No romance, os irmãos
têm nome de Pedro e Paulo, o que evoca os dois apóstolos, também rivais, segundo a explicação do velho Plácido.
Pedro e Paulo, como já ressaltado “não são individualidades autônomas”, não são pessoas físicas, mas símbolos, representação duma dualidade radical no homem, desde a criação, como faz sugerir a expressão “desde o

útero” e a “flor eterna” do Aires, no final do romance: o homem nasceu assim, é assim, e será eternamente assim.
O drama, que constitui o caso psicológico e humano abordado no romance, resulta de serem os gêmeos dois e não um. Quer dizer, os dois gênios (Pedro e Paulo) que deveriam nascer em um, nascem em dois. Os dois aspectos que deviam estar numa só pessoa, como é normal, brotam em duas.

Machado poderia muito bem pegar uma só pessoa e analisar-lhe essa complexidade dual. Não o fez.

Preferiu isolar os dois componentes básicos do ser humano: coração (Paulo) e espírito (Pedro), para usar a nomenclatura de Flora. Isolados em dois, seria mais fácil a dissecação do ser humano, a análise da complexidade antitética do homem.
É isso que Machado quer insinuar: todos nós temos dois gênios (=gêmeos) dentro de nós. Com outras palavras: todos nós temos um Pedro (espírito) e um Paulo (coração). Ora somos inquietos, como Paulo, ora dissimulados, como Pedro; ora republicanos (Paulo), ora conservadores (Pedro).
Por isso mesmo é que Flora os confundia numa só pessoa: Pedro era o lado que faltava em Paulo, e Paulo era o lado que faltava em Pedro; um completava o outro, porque cada um deles não era uma pessoa completa: “Flora sentiu a falta de Pedro, como sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. Ambas traziam a ausência de um gêmeo”.
Também nesse sentido está aquele desenho de Flora, “em que estavam desenhadas duas cabeças juntas e iguais”, que o Aires identificou com os gêmeos, observando que “as duas cabeças estavam ligadas por um vínculo escondido”.
Nesse sentido, outra passagem ainda que merece destaque é a cena da morte de Flora, quando os gêmeos “queriam entrar ambos” no quarto, e Flora tem esta expressiva pergunta que é tomada como delírio da moça:
“- Ambos quais? perguntou Flora.”
Mas o Aires, que conhece e sabe tudo, “rejeitou o delírio”: os gêmeos eram uma só pessoa e, portanto, não podiam ser “ambos”.
Enfim, assim termina o romance: os dois gêmeos deputados com prenúncio de que seriam maiores ainda - Presidente da República, certamente. O pior é que “a presidência da República não podia ser para dous”, e eles eram um em dois, criados à imagem e semelhança de Deus, que é um em três...
2) Momento político brasileiro. A narrativa machadiana vem entrecortada de fatos políticos da história do Brasil: a abolição da escravatura, em 1888, vem aí mencionada opacamente, mas servindo para Paulo tecer considerações nitidamente de sentido republicano “A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco”. A “emancipação do branco” seria a
República, o que “era uma ameaça ao imperador e ao império”, conforme pressente Natividade.
Chega rápida e mansamente a República, da noite para o dia (“Noite de 14” e “Manhã de 15”), o que Machado vai ironizar com a “tabuleta do Custódio”, que caía aos pedaços com a “madeira rachada e comida de bichos”. Era então a “Confeitaria do Império”. Era preciso uma reforma, e


o Custódio, embora a contragosto, envia-a ao pintor. Nem bem este tinha acabado a sua obra (estava no “d”), proclama-se a República, sem ao menos avisarem ao pobre homem... Custódio estava desesperado. Em vão o Aires procura consolá-lo, observando que nem tudo estava perdido. Poderia perfeitamente trocar de nome. O pintor

arara no “d” (“Confeitaria d”). Era fácil acrescentar “República” (“Confeitaria da República”), ao que o Custódio responde:
“Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dous meses, houver nova
reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro”.
Mas como insinua o Aires, agora junto ao Santos, “nada se mudaria; o regime, sim era possível, mas também
se muda de roupa sem mudar de pele (...); tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição”.



ESTUDO FINAL DO ENREDO

É o romance da ambigüidade, narrado em terceira pessoa, pelo Conselheiro Aires. Pedro e Paulo seriam “os dois lados da verdade”.
À medida que vão crescendo, os irmãos começam a definir seus temperamentos diversos: são rivais em tudo. Paulo é impulsivo, arrebatado, Pedro é dissimulado e conservador, o que vem a ser motivo de brigas entre os dois. Já adultos, a causa principal de suas divergências passa a ser de ordem política: Paulo é republicano e Pedro, monarquista. Estamos em plena época da Proclamação da República, quando decorre a ação do romance.
Até em seus amores, os gêmeos são competitivos. Flora, a moça de quem ambos gostam, se entretém com um e outro, sem se decidir por nenhum dos dois: é retraída, modesta, e seu temperamento avesso a festas e alegrias levou o Conselheiro Aires a dizer que ela era “inexplicável”. O conselheiro é mais um grande personagem da galeria machadiana, que reaparecerá como memorialista no próximo e último romance do autor: velho diplomata aposentado, de hábitos discretos e gosto requintado, amante de citações eruditas, muitas vezes parece exprimir o pensamento do próprio romancista.
As divergências entre os irmãos persistem, muito embora, com a morte de Flora, tenham jurado junto a seu túmulo uma reconciliação perpétua. Continuam a se desentender, agora em plena tribuna, depois que ambos se elegeram deputados, e só se reconciliam ao fim do livro, com novo juramento de amizade eterna, este feito junto ao leito da mãe agonizante.
No texto a seguir, transcrito do capítulo XVIII de Esaú e Jacó, um retrato de como vieram crescendo os dois gêmeos.
Obedeciam aos pais sem grande esforço, posto fossem teimosos. Nem mentiam mais que outros meninos da cidade. Ao cabo, a mentira é alguma vez meia virtude. Assim é que, quando eles disseram não ter visto furtar um relógio da mãe, presente do pai, quando eram noivos, mentiram conscientemente, porque a criada que o tirou foi apanhada por eles em plena ação de furto. Mas era tão amiga deles! -e com tais lágrimas lhes pediu que não dissessem a ninguém, que os gêmeos negaram absolutamente ter visto nada. Contavam sete anos. Aos nove, quando já a moça ia longe, é que descobriram, não sei a que propósito, o caso escondido. A mãe quis saber por que é que eles calaram outrora; não souberam explicar-se, mas é claro que o silêncio de 1878 foi obra da afeição e da piedade, e daí a meia virtude, porque é alguma cousa pagar amor com amor Quanto à revelação de 1880 só se pode explicar pela distância do tempo. Já não estava presente a boa Miquelina; talvez já estivesse morta. Demais, veio tão naturalmente a referência...
— Mas, por que é que vocês até agora não me disseram? Teimava a mãe.
Não sabendo mais que razão dessem um deles, creio que Pedro, resolveu acusar o irmão:
— Foi ele, mamãe!
— Eu? Redargüiu Paulo. Foi ele, mamãe, ele é que não disse nada.
— Foi você!
— Foi você! Não minta!
— Mentiroso é ele!
Cresceram um para o outro. Natividade acudiu prestemente, não tanto que impedisse a troca dos primeiros murros. Segurou-lhes os braços a tempo de evitar outros, e, em vez de os castigar ou ameaçar beijou-os com tamanha ternura que eles não acharam melhor ocasião de lhe pedir doce. Tiveram doce; tiveram também um passeio, à tarde, no carrinho do pai.
Na volta estavam amigos ou reconciliados, Contaram à mãe o passeio, a gente da rua, as outras crianças que olhavam para eles com inveja, uma que metia o dedo na boca, outra no nariz, e as moças que estavam às janelas, algumas que os acharam bonitos. Neste último ponto divergiam, porque cada um deles tomava para si só as admirações, mas a mãe interveio:
— Foi para ambos. Vocês são tão parecidos, que não podia ser senão para ambos. E sabem por que é que as moças elogiaram vocês? Foi por ver que iam amigos, chegadinhos um ao outro. Meninos bonitos não brigam, ainda menos sendo irmãos. Quero vê-los quietos e amigos, brincando juntos sem rusga nem nada. Estão entendendo?
Pedro respondeu que sim; Paulo esperou que a mãe repetisse a pergunta, e deu igual resposta. Enfim, porque esta mandasse, abraçaram-se, mas foi um abraçar sem gosto, sem força, quase sem braços; encostaram-se um ao outro, estenderam as mãos às costas do irmão, e deixaram-nas cair.
De noite, na alcova, cada um deles concluiu para si que devia os obséquios daquela tarde, o doce, os beijos e o carro, à briga que tiveram, e que outra briga podia render tanto ou mais. Sem palavras, como um romance ao piano, resolveram ir à cara um do outro, na primeira ocasião. Isto que devia ser um laço armado à ternura da mãe, trouxe ao coração de ambos uma sensação particular; que não era só consolo e desforra do soco recebido naquele dia, mas também satisfação de um desejo íntimo, profundo, necessário, Sem ódio, disseram ainda algumas palavras de cama a cama, riram de uma ou outra lembrança da rua, até que o sono entrou com os seus pés de lã e bico calado, e tomou conta da alcova inteira.
Neste outro texto, do início do livro, relata-se a reação de Natividade, mãe dos gêmeos diante da gravidez. Observe o sentimento negativo diante da maternidade, a quase recusa da gestação e das alterações que ela provoca no corpo, além da limitação que impõe à vida social.
Nos primeiros dias, os sintomas desconcertaram a nossa amiga. E duro dizê-lo, mas é verdade. Lá se iam bailes e festas, lá ia à liberdade e a folga. Natividade andava já na alta roda do tempo; acabou de entrar por ela, com tal arte que parecia haver ali nascido. Carteava-se com grandes damas, era familiar de muitas, tuteava algumas. Nem tinha só esta casa de Botafogo, mas também outra em Petrópolis; nem só carro, mas também camarote no Teatro Lírico, não contando os bailes do Cassino Fluminense, os das amigas e os seus, todo o repertório, em suma, de vida elegante. Era nomeada nas gazetas, pertencia àquela dúzia de nomes planetários que figuram no meio da plebe de estrelas. O marido era capitalista e diretor de um banco.
No meio disso, a que vinha agora uma criança deformá-la por meses, obrigá-la a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o resto? Tal foi à primeira sensação da mãe, e o primeiro ímpeto foi esmagar o gérmen. Criou raiva ao marido.
Ao final do livro, Natividade, já agonizante, obtém dos filhos o juramento de reconciliação. Mas, como já acontecera na morte de Flora, a reconciliação era provisória, e duraria até pouco depois do enterro da mãe:
Ora, o que a mãe fez, quando eles entraram e fecharam a porta do quarto, foi pedir-lhes que ficasse cada um do lado da cama e lhe estendessem a destra. Juntou-as sem força e fechou-as em suas mãos, ardentes. Depois, com a voz expirante e os olhos acesos apenas de febre, pediu-lhes um favor grande e único. Eles iam chorando e calando, porventura adivinhando o favor.
— Um favor derradeiro, insistiu ela.
— Diga, mamãe.
— Vocês vão ser amigos. Sua mãe padecerá no outro mundo se os não vir amigos neste. Peço pouco; a vossa vida custou-me muito, a criação também, e a minha esperança era vê-los grandes homens. Deus não quer, paciência. Eu é que quero saber que não deixo dois ingratos. Anda Pedro, anda Paulo, jurem que serão amigos.
Os moços choravam. Se não falavam, é porque a voz não lhes queria sair da garganta. Quando pôde, saiu trêmula, mas clara e forte.
— Juro, mamãe!
— Juro, mamãe!
— Amigos para todo sempre?
— Sim.
— Sim.
— Não quero outras saudades. Estas somente, a amizade verdadeira, e que se não quebre nunca mais.
Natividade ainda conservou as mãos deles presas, sentiu-as trêmulas de comoção, e esteve calada alguns instantes.
— Posso morrer tranqüila.
— Não, mamãe não morre, interromperam ambos.
Parece que a mãe quis sorrir a esta palavra de confiança, mas a boca não respondeu à intenção, antes fez um trejeito que assustou os filhos. Paulo correu a pedir socorro. Santos entrou desorientado no quarto, a tempo de ouvir à esposa algumas palavras suspiradas e derradeiras.

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